Al Giordano, do Narco News


Foto: Daily Kos (2009)

Jornalismo autêntico
Ação e reação, prega Al Giordano, do Narco News

Al Giordano é editor do Narco News, site de notícias que cobre a guerra contra as drogas promovida pelos EUA de um ponto de vista heterodoxo, e ele encerrou ontem, domingo 16, o evento Mídia Tática Brasil, discutindo mídia, resistência e o que ele chama de “jornalismo autêntico”, uma versão moderna do intelectual orgânico proposto por Antonio Gramsci. Abaixo, um apanhado em texto corrido de diversas respostas que ele me deu num pingue-pongue antes de sua palestra.

“Não planejo trabalhar por aqui, não da maneira convencional. Vim como turista, para ouvir, aprender, conhecer a linguagem que me permita conversar, não apenas trabalhar. Estou de folga. Seis anos atrás saí das telas de computador, das redações, dos deadlines, TVs, telefones, tudo isso e fui para o Chiapas no México e passei uma parte considerável de um ano inteiro entre comunidades zapatistas, apenas ouvindo e aprendendo.

Foi a melhor coisa que eu já fiz. Três anos depois, o Narco News nasceu, baseado em boa parte nas táticas e estratégias que estudei nas montanhas e selvas de Chiapas. Acho que, para nós que trabalhamos com tecnologia de mídia ou jornalismo, é importante sair da tela de vez em quando, e é aí que você tromba com notícias de verdade, notícias sobre pessoas. O Narco News, apesar de ser uma operação que trabalha com um orçamento muito baixo sem publicidade ou venda de produtos, hoje é gigantesco em termos de leitores e de impacto internacional, especialmente neste hemisfério. Ele quebra os bloqueios de informação além das fronteiras e idiomas. E há um time talentoso que entende o jornalismo autêntico como eu, por isso estou dando um tempo.

Nosso editor convidado, Gary Webb e o chefe do escritório andino Luis Gómez, são os porta-vozes do Narco News quando estou fora. Este jornal internacional online começou em inglês em abril de 2000 e depois de um tempo tinha cerca de 100 mil hits por mês. Agora chegamos aos dois milhões mensais. Passamos a nos comunicar em espanhol em janeiro de 2002 e agora começamos a publicar em português… O processo está apenas começando. Somos uma pequena redação nômade, viajando pela América Latina e publicando online nossas matérias sobre a guerra contra as drogas, a mídia e a democracia.

No mês passado, organizei a Escola de Jornalismo Autêntico Narco News na Isla Mujeres e na Península Yucatan, ambas no México. Tínhamos 26 alunos matriculados, seis do Brasil, e Renato Rovai, editor da revista Fórum, foi um professor brilhante e editor do Narco News em português durante os dez dias do curso.

Vi entre os participantes brasileiros um brilho, uma esperança, um sentimento do que pode ser feito, que me intriga muito. Nos EUA, como todo o mundo sabe, o pensamento livre e revolucionário é desanimado e sublimado. Não vivo mais lá há seis anos. Tenho falado espanhol em minha vida cotidiana, em algum lugar do país chamado América (se refere à América Latina). Acho que é hora de aprender português e estudar o que acontece em seu país. Se o Narco News é trilíngüe, por que seu editor não deveria ser também? Talvez o “vírus da mídia” que nivela o campo de ação esteja fervendo no Brasil.

Você deve entender que o mundo anglófono tem um problema de linguagem: esqueceu de falar vários idiomas. Se eles ensinam uma língua estrangeira na escola ou é espanhol ou francês. Talvez alemão ou italiano ou latim. Português, muito menos o brasileiro, está muito atrás e os EUA em particular são uma cultura muito etnocêntrica. Muitas pessoas nos EUA sequer falam uma segunda língua. E isto trava seu crescimento.

Há um entendimento que o Brasil é país muito rico em termos tecnológicos, um dos principais produtores de software do mundo, conhecido por sua aviação e computação e que é um gigante econômico, mas não é isso que me interessa em relação ao seu país. O que me interessa é a sociedade, as pessoas. Um de nossos correspondentes, a jornalista autêntica carioca Karine Muller, acabou de postar uma reportagem muito interessante sobre o que acontece no Rio, no Narconews. Prefiro ouvir dela, porque ela é quem mora lá. É a cidade dela, a voz dela, e não a de um gringo, que deve ser lida e ouvida sobre os acontecimentos no Rio.

Nosso time de colaboradores tem crescido exponencialmente com a Escola de Jornalismo Autêntico: correspondentes na Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Equadro, México, Peru, Venezuela, Europa, EUA… Os leitores foram recentemente apresentados a eles e verão ainda mais gente aparecer em breve. É um processo excitante. Mas enquanto isso, as condições objetivas para a revolta de massa contra a Tirania da Mídia estão se ajustando e o assunto está se agitando em grandes pontos da América do Sul. Sou um jornalista e sei quando sinto o cheiro de uma boa história. Também sou um revolucionário que faz com que esta história continue indo. E eu acho que o jornalismo autêntico de hoje não pode apenas ser ambos, como DEVE ser.

As pessoas estão chegando à conclusão que a mídia se tornou, em nosso tempo, uma espécie de Estado, mais poderoso que governos. No caso da mídia de emissão – TV e rádio -, poderosos interesses econômicos tomaram conta das ondas públicas, espaço que deveria ser patrimônio de toda humanidade, e colocou-o a serviço apenas daqueles que podem pagar anúncios.

Por que isto é ruim para eu e você? Anunciantes querem espectadores e ouvintes com dinheiro para gastar, emissoras dependem de anunciantes e assim os grandes pólos de mídia pararam de servir à maioria. Que maioria? Aqueles de nós que não têm dinheiro para gastar. A mídia sintoniza seus produtos com os ricos e o resto fica à míngua. A maioria das pessoas, sem riquezas, não têm nenhum acesso, muito menos acesso proporcional, ao nosso espaço de transmissão de ondas. E isso é igual em todo o planeta.

E não estamos falando de tecnologia! Muito pelo contrário: o ser humano de hoje trava uma guerra de 24 horas por dia entre o indivíduo e a tecnologia. Para cada vantagem que a tecnologia trouxe aos esforços de resistência, eles trouxeram dois problemas adicionais: a total vigilância oferecida pelas tecnologias de comunicação – internet, telefones celulares, rádio pirata e TV – em relação àqueles que as usam, e o fato que, em muitos casos, os donos ainda podem desplugar tudo quando o momento revolucionário começar.

Atos heróicos de resistência, sim, são possíveis neste mar caótico de mídia e, na melhor da hipóteses, pode preservar e expandir liberdades. Mas estes atos são feitos por humanos, não por telefones celulares ou sites na web. Se uma brecha no sistema nos permite usar telefones celulares, nós usaremos. Esta brecha pode fechar amanhã e aí estaremos usando outra coisa. Eu acho o uso tático de celulares fascinante. Mas só humanos comprometidos com suas missões, num sentido de guerrilha, e o compromisso de revolucionários autênticos poderá derrubar o Rei Mídia. As grandes revoluções através da história podem ter acontecido com armas, mas elas não eram sobre armas. Em muitos casos, trouxeram mais paz e justiça e menos uso de armas. A revolta das massas que acontecerá contra o Tirano Mídia acontecerá com tecnologia, mas não é sobre tecnologia. Ao contrário, pode resultar num uso menor de tecnologias de dominação e certamente no menor abuso destas.

Eu não sei qual é a solução contra esta ditadura. Eu já me fiz muitas perguntas, tanto no Narco News, como em outros lugares. Eu estou muito empolgado com o fato que pessoas criativas e talentosas estejam pensando e trabalhando neste problema de mídia no Brasil. Sei de um lugar que está passando por uma batalha tensa sobre o papel da mídia na sociedade, que é a Venezuela. Muitas dessas idéias discutidas no Mídia Tática atingiram um nível de participação popular junto às massas venezuelanas a ponto que o que tem acontecido lá merece estar nos holofotes dos pensadores e agentes desta Renascença da Mídia Autêntica. A Venezuela em 2002 deve ser visto como um farol que nos ajuda a saber o rumo nas batalhas que virão.

Quem se importa com o que a mídia corporativa diz? Temos que substituí-la, tirá-la de lá e deixar o caminho livre. São mercenários. É nosso trabalho deixar a audiência baixa. Os agentes da mudança sempre são retratados como maus e é trabalho deles agir assim. Ignore o que a mídia comercial diz. Melhor ainda – amarre-os em suas próprias regras, porque eles estão rompendo todas as regras que eles mesmos estabeleceram a respeito de bem estar, verdade, democracia e outros de seus slogans.

No Narco News, nós seguramos eles em sua própria retórica. Muitas de nossas histórias mais populares estão no campo da crítica de mídia, mas não é uma crítica singela. Nós vamos atrás de repórteres e empresas de mídia corruptas e antiéticas pelo nome. Torna-se muito pessoal para muitos deles. Alguns perdem seus empregos depois que os denunciamos. Achamos que os repórteres da mídia comercial deveriam prestar atenção e perceber que estamos seguindo-os em sua própria retórica. E digo isto como alguém que foi um jornalista comercial – para jornais, revistas, TVs, rádios, internet e na maior parte matérias investigativas sobre crimes e política – em meu país por quase uma década. Jornalistas perderam seu rumo. Não é suficiente ser uma “alternativa” e pedir permissão para reformular as coisas. A Renascença do Jornalismo Autêntico está viva e bem em nosso hemisfério. Estou indo ver como as coisas andam no Brasil.

Claro que, enquanto estiver em São Paulo e no Brasil, estarei ouvindo meus colegas e todas as pessoas que eu encontrar, sobre suas soluções para o problema da mídia. Eu iria a São Paulo de qualquer jeito e fui convidado ao encontro do Mídia Tática. Acho que eu estou no lugar certo, na hora certa, vê? Bastou planejar uma folga da maldita tela que fui ao econtro de notícias de valor. É aí que as notícias são encontradas: longe da Tela”.

Derek Holzer, do Next Five Minutes


Foto: Atti Ahonen (2010)

Derek Holzer é o cara que deu origem ao Next Five Minutes, o encontro de novas mídias e resistência eletrônica que proporcionou a criação do Mídia Tática Brasil, que aconteceu entre os dias 13 e 16, nas mediações da Paulista, aqui em São Paulo. Derek foi o principal destaque do primeiro dia e fala, às 20 horas, na palestra “Desvendando a Mídia Tática”. Conversei com ele pouco antes de pisar em solo brasileiro.

O que você espera em relação ao Mídia Tática Brasil e à cena brasileira?
Honestamente, espero mais aprender do que ensinar. Você deve achar que esta cultura de “resisitência eletrônica” que falamos seja global – talvez universal – mas é fato neste assunto que qualquer tipo de movimento político cultural está profundamente enraizado com a cultura local de onde ele nasce. Muito da net.art inicial saiu do desejo de europeus ocidentais e orientais em encontrar uma rede eficaz e sem mediação para comunicar as descobertas de ambos mundos. Mais recentemente, contudo, ela se tornou um meio de exploração muito formal na Europa e um fetiche sobre o design criado por uma cultura corporativa na América do Norte. Em cada caso, com notáveis exceções, eu diria que os agentes foram de alguma forma seduzidos rumo a uma estetização das ferramentas de seu próprio negócio, e para longe do uso destas ferramentas no compromisso com preocupações sociais mais profundas. Além disso, meu interesse em visitar o Brasil é muito próximo àquele que me levou à Europa Oriental há alguns anos: ver uma comunidade eletrônica que ainda está se desenvolvendo e aprender quais, se algum, outros modelos estão sendo importados e nível de pensamento crítico que acompanha a adaptação destes modelos.

Como você vê o evento dentro desta nova resistência eletrônica mundial?
Estou muito impressionado com a coerência da programação e certamente mal posso esperar para ouvir o que os palestrantes locais têm a oferecer. Mesmo nesta cultura de ciberativismo e ciberteoria, o culto ao “rockstar” existe. Numa tentativa de se legitimizar melhor, muitos eventos em países com cenas de novas mídia chamadas de “em desenvolvimento” se entopem com os mesmos nomes que estão apresentando os mesmos trabalhos há oito anos. As vozes locais são simplesmente sufocadas. É bom ver, neste evento, as vozes locais estão realmente no primeiro plano. Acho que os brasileiros têm muito a ensinar uns aos outros, como têm a aprender com artistas da Europa e dos Estados Unidos.

Quais são as relações entre esta cultura eletrônica, o movimento antiglobalização e as recentes passeatas antiguerra?
Uma coisa que eu acho que separa os novos desenvolvimentos na resistência eletrônica, seja em relação à globalização das corporações ou mobilizações massivas antiguerra, é que há uma vontade de encontrar os oponentes de frente, usando suas mesmas ferramentas e táticas contra eles. Um excelente exemplo disso é o site do Gatt – um site falso para a Organização Mundial do Trabalho que recentemente anunciou o fim da OMC e sua reformulação como uma organização dedicada à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este anúncio foi levado a sério em muitos lugares, incluindo no Parlamento Canadense, onde gerou uma discussão sobre como isto afetaria as leis de comércio de madeira. Este tipo de tática não era apenas impossível para uma geração ou duas antes da nossa, mas também sequer seria considerada, uma vez que o foco naquela época era muito maior na criação de comunidades utópicas contraculturais que foram rapidamente assimiladas, cooptadas, desarmadas ou tornaram-se guetos graças à influência da mídia mundial homogeinizadora. David Garcia e outros criaram um marco para a cultura de resistência e suas relações com a mídia nos grupos ativistas de conscientização contra a Aids, como o ACT-UP no meio dos anos 80. Com seu apelo militante “fora do gueto e dentro da mídia de todo o jeito possível”, eles definiram uma estratégia que ainda é a base da maior parte do ativismo de mídia atual.

Fale de sua experiência com rádio online.
Como meu primeiro envolvimento com esta nova cultura de mídia aconteceu através da net.radio, eu me sinto muito próximo a este movimento. Um dos primeiros players-chave em net.radio foi o Re-Lab em Riga, na Latvia. Para eles, net.radio era uma forma de estabelecer conexões com outros artistas através do mundo à medida que se tornava caro realizar estes encontros pessoalmente: requerimentos de visto, passagens de avião e por aí vai (muitos brasileiros são familiarizados a esta situação, tenho certeza). Para os pioneiros da net.radio na Latvia, a comunicação não era necessariamente um modelo de transmissão de rádio um-para-muitos. Em vez disso, era uma rede ponto-a-ponto que compartilhava experimentos de áudio entre um grupo fechado entre a Europa oriental e ocidental. O foco estava na participação, mais do que na audição e o resultado final quase nunca era tão importante quanto o processo de comunicação pelo caminho.
Isto, claro, pavimentou o caminho para o que aconteceu depois, especialmente a explosão do Centro de Mídia Independente depois das passeatas de Seattle em 1999. Net.radio então passou para o modelo um-para-muitos (ou talvez muitos-para-muitos) de novo, quase sempre usando combinações híbridas de internet, rádios piratas, livres, comunitárias e universitárias para espalhar a mensagem o mais distante possível.
Em minha própria experiência, vi meu projeto na República Tcheca, Radio Jeleni, ir de uma média de três a 3 mil ouvintes por dia durantes os protestos contra o Banco Mundial e o FMI durante o outono do ano 2000. No fim das passeatas, quando a atenção global voltou-se para o “next big thing”, a audiência voltou aos três, refletindo o momentário, mas impermanente, mudança do modelo P2P ao modelo de radiodifusão tradicional. Para mais informações sobre este modelo ponto-a-ponto de comunicação, sugiro o ensaio de Eric Kluitenberg, Mídia Sem Público (Media Without an Audience), que é altamente baseado nas experiências dos primeiros inovadores de net.radio, há seis ou sete anos.

Como eventos deste tipo podem atingir um público maior?
Eu tenho alguns comentários sobre isso, talvez não um plano, mas alguns conselhos.
Primeiro: considere seu público. Muita discussão acontece – e ainda assim é muito necessária – no tópico de tática mídia em um nível “expert”. Isto é, num nível em que os envolvidos são praticantes de mídia. Estas discussões devem ser as mais transparente possíveis para atrair o público, refletindo a idéia de uma mídia transparente sobre a mídia fechada do sistema, mas nunca devemos confundi-las com eventos para o público em geral. Discutir táticas de comunicação com o grande público não é o mesmo que comunicar idéias com este mesmo público. O “produto final” de um evento como o Mídia Tática, na minha opinião, deveria ser tão eficaz em dar informação como qualquer outra mídia, mas deve convidar dez vezes mais à participação. Nada é menos convidativo à participação do que a metadiscussão de insiders, o que faz com que a maioria das pessoas tenha este sentimento que esta coisa de cultura eletrônica é só para experts, geeks e freaks.
Segundo: mantenha a nível local. E isso em várias maneiras. Convidados estrangeiros podem trazer novas idéias, mas olhe o que eles fizeram com a política na América Central, os sistemas de saúde de vários países africanos ou as transições econômicas na Europa Oriental ou na região do Báltico! Use-os com muito cuidado e alto teor crítico. Há uma impressão em vários lugares que visitei e apresentei projetos que as pessoas irão escutar idéias estrangeiras de forma mais receptiva do que as locais. Enquanto isso é parcialmente verdade, idéias que vêm da Holanda pro Brasil, por exemplo, podem ser facilmente menosprezadas como pertencendo “à outra cultura” ou sendo “imperialista” ou coisas do tipo. Por isso, tenho um conhecimento muito limitado do Brasil e de sua cultura. Como posso fazer algo em termos de mídia para seu povo? Muito melhor seria prover a melhor informação e inspiração que eu posso e deixar os brasileiros fazendo eles mesmos suas mídias. Desta forma, a infraestrutura da Holanda e do Brasil podem ser tão diferentes como a temperatura. O que funciona em Amsterdã – rádio pirata, internet de banda larga e TV a cabo não-comercial e independente – pode não ser a solução ideal num país com restrições fortes sobre o rádio, uma infraestutura de internet mais fraca e bem menos dinheiro para emissoras alternativas. Encontrar suas forças na distribuição pública, mais do que se basear inteiramente em modelos integralmente importados, te deixa muitos passos à frente do gueto de mídia que prega apenas para os convertidos.
Terceiro: fique tranqüilo. Permitir-se ser estereotipado é o equivalente a ser cooptado ou marginalizado pela mídia mainstream, que come aquilo que pode usar e caga aquilo que não pode. O arquétipo de mídia do “hacker”, por exemplo, é útil pois cria paranóia. A paranóia é útil porque vende coisas – tudo, de programas antivírus a programas de defesa nacional. Da mesma forma, tempo gasto desconstruindo mitos sobre o trabalho de alguém é tempo desperdiçado. Entrar em uma discussões como se ele é mais um phreak de computador em busca da glória do que um ativista de verdade, ou pior ainda, tentar separar em público um do outro, é usar a terminologia alheia e reforçar os arquétipos da mídia. Fique mais calmo, mude suas táticas antes que elas tornem-se estagnadas, negue ou subverta rótulos criados para você e você descobrirá que a reação do público ao inesperado é muito maior do que ao esperado. Recentes ações do Critical Art Ensemble e outros no campo da biotecnologia merecem ser citadas. Quem poderia prever, ainda mais encontrar um arquétipo de mídia que possa ser usado para, um grupo de ativistas que reverteriam a engenharia de plantas modificadas geneticamente, tornando-as vulneráveis aos herbicidas que supostamente elas seriam imunes? “Genoterroristas”? “Agrohackers”? Quando algum rótulo grudar, os efeitos da ação já terão sido sentidos.

Como o Brasil é visto pela comunidade eletrônica global?
Eu não tive tempo de perguntar ainda. Volto em algumas semanas com a resposta! Falando sério, eu acho que há muita atenção se voltando para a América do Sul à medida em que os experimentos laboratoriais econômicos feitos pelo Fundo Monetário Internacional e outras entidades financeiras que governam o mundo começam a falhar, um após o outro. O Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, também mostrou apoio popular numa escalada pela resistência determinante às regras econômicas globais em detrimento aos direitos humanos sobre privilégios de negócios. Minha esperança pessoal é que os brasileiros provem estar prontos para criar suas próprias idéias no front eletrônico, mais do que se tornar um grupo de markting para esquemas de design coloridos vindos do exterior, pois estão no front social. Saberia exatamente sobre isso a partir desta semana.

Richard Barbrook x John Perry Barlow (2003)

O Mídia Tática Brasil deu início aos seus trabalhos nesta sexta, 7 de março, com uma mesa redonda histórica – literalmente. Afinal, foi a primeira vez que duas forças antagônicas do pensamento pós-eletrônico se encontraram pessoalmente: de um lado, o americano John Perry Barlow, vice-presidente da Electronic Frontier Foundation e autor Declaração de Independência do Ciberespaço; do outro o inglês Richard Barbrook, do Hypermedia Resource Center e autor do Manifesto Cibercomunista. Só isso bastaria para a noite no Sesc Avenida Paulista ser rotulada com o adjetivo citado no início, mas se levarmos em consideração que tal encontro aconteceu no Brasil, num evento de natureza inédita por aqui e com a chancela do governo federal, podemos crer que as implicações são muito mais profundas do que em qualquer outra circunstância – especialmente para nós, brasileiros.

Mas o que deveria ser um embate de forças e idéias, tornou-se um motivo para ambos defenderem seus pontos de vista ao mesmo tempo que espezinhavam-se mutuamente. Tirando todo o debate ideológico e informacional, o que se assistia era à velha arenga entre ingleses e norte-americanos: um acusava o outro de ser radical demais, caricato demais, previsível e ingênuo demais. Cada um à sua maneira: Barlow exibindo aquele showmanship ianque que substitui o carisma por uma arrogância sarcástica [“De onde eu venho, do Wyoming, ser chamado de stalinista é um insulto”, depois que Barbrook apenas citou o stalinismo como parte do cânone do comunismo]; Barbrook arregalando os olhos à cada declaração de efeito do americano, engolindo gargalhadas em tom de desprezo e cuspindo sua franqueza britânica como o punk acadêmico que é [“Deus me perdoe por concordar com John Barlow”, disse antes de concordar com o óbvio de uma proposição do público – que a fome seria um problema mais urgente que a inclusão digital]. O clima tenso e animoso era cortado pelas piadas populistas de Barlow e pelos comentários irônicos de Barbrook.

Sentado na ponta à esquerda da mesa, Barlow é, fisicamente, o que aconteceria com Chuck Norris se ele se tornasse pastor evangélico de TV. Sua atuação era puro showbusiness, naquele tipo de entonação “como eu sou foda” que o Jô Soares faz para agradar sua claque. Parte do público [auditório lotado, gente em pé e nos corredores], deslumbrou-se com o papo furado caubói: “Fiz parte de uma banda, que não é muito conhecida aqui no Brasil… O Grateful Dead”, “Eu coloquei o Timbuktu online”, “Não fui a Davos este ano”. Jocoso, defendia o ciberespaço como um fim em si mesmo, um universo paralelo que deve adequar-se à realidade offline.

Já Barbrook, no canto direito, parecia uma cruza de Ken Kaniff [um dos personagens sórdidos do Eminem] com um dos caras do Madness. Chapeuzinho de palha e blaser um número menor, movimentava-se constantemente durante o discurso de Barlow. Dirigia-se rispidamente ao microfone, falando em tom sério quando apresentava os conceitos de sua Gift Economy e mostrava esgar ao discordar do que seu colega de mesa propunha. Insistia constantemente que não há diferença entre o ciberespaço e a vida real, que um é apenas a projeção do outro; enquanto Barlow filosofava sobre um ser como a mente [o ciberespaço] e outro como o corpo [a realidade].

Ficaram trocando farpas, Barbrook se referindo à Barlow como neoliberal e Barlow chamando Barbrook de nervosinho. Mas não deixa de ser notável o fato de Barlow reduzir a internet à lógica capitalista, desprezando conceitos fundamentais da rede em prol de opiniões controversas como “se a Internet fizesse alguma diferença, eu estaria preso” [como disse ao Pedro Dória, do Nomínimo]. Barbrook contrapôs-se de imediato: “Se a internet não fizesse diferença, eu não estaria aqui”.

Parêntese para o ministro: Gil, que mediava o debate, no centro da mesa, veste bem o traje de ministro da cultura, mostrando-se desenvolto para abordar as ramificações da discussão, todos parentes do tema central, inclusão digital. Mais do que isso, traçou paralelos didáticos a respeito de proteção de patentes e direitos autorais eletrônicos e aproveitou uma deixa para registrar em público sua opinião sobre a reforma da previdência [“se formos nos basear em direitos adquiridos, a escravidão não teria acabado”].

Constantemente bilíngüe [brasileiramente britânico], mostrou-se um tanto equivocado sobre alguns conceitos [não é possível chamar de “ciberanarquista” um sujeito que defende o direito de propriedade [como se referiu a Barlow], nem dizer que “o capitalismo deu certo” em mais de 200 anos e “o comunismo deu errado em menos de 80”]. E, claro, aproveitou o microfone para cantarolar [“vestiu uma camisa listrada e saiu por aí…”, cantou à menina de camisa listrada que recolhia as perguntas do público], o que eu, pessoalmente, acho do caralho. Mídia tática é isso aí.

Mas se como ministro Gil foi correto, o mesmo não pode se dizer de sua atuação como mediador. Descaradamente puxou a sardinha pro lado de Barlow, a quem servia de anfitrião na semana passada. Os dois trocavam elogios como velhos camaradas e em alguns momentos o ministro deixou escapar o desprezo por alguns conceitos de Barbrook. Mesmo na mediação propriamente dita, quando se dirigia aos dois a fim de confrontar algum tema, virava o corpo para o lado de Barlow e terminava o debate concordando com o amigo. Não deixa de ser irônico o fato de Gil ter passado boa parte do debate voltado para a direita.

Fossem apenas as inconveniências ideológicas dos gringos, até passaria. Mas Gil falhou ao não estender o debate aos outros presentes: Danilo Miranda, do Sesc; João Cassino [que veio no lugar de Beá Tibiriçá], dos Telecentros, Ricardo Rosas, da organização do Mídia Tática, e Evandro Prestes, do Online Cidadão, apenas comentaram em uma ou outra oportunidade.

O debate ficou mais tenso quando recorreram ao tema da pirataria – Barbrook levantando a bandeira preta ao aplaudir a pirataria como vitória do povo sobre as corporações; Barlow baixando o polegar ao simplificá-la como crime organizado. Levantou-se a questão sobre a troca de arquivos via internet, que acabou respingando em Gil que, ao ser confrontado por uma pergunta do público que pedia a opinião sobre do ministro sobre o assunto, “como integrante da indústria fonográfica”. Encurralado, mostrou o crachá: “Eu, como ministro, tenho que defender a lei, o estado de direito”, safou-se, salientando que, no entanto, as leis precisam ser revistas devido à mudança dos meios.

Interessante observar que, a despeito de suas posições o ciberespaço em relação à realidade, os textos-chave de John e Richard proclamam seus conceitos básicos usando paralelos com o mundo real: Barlow emulou a Declaração da Independência de seu país, Barbrook o célebre Manifesto Comunista escrito em Londres por Karl Marx e Friedrich Engels. Ambas analogias são conservadoras e reacionárias [mesmo que Barbrook tenha usado sua referência ironicamente], nenhuma vislumbra um texto-chave a partir de uma base nova e eletrônica – nada de paralelos com o morto-vivo universo da palavra impressa.

O debate terminou como o fim de uma guerra de nervos: sem conclusão, conceitos em aberto, os participantes virando-se para lados diferentes. Mas vale sublinhar aqui a experiência descrita por Evandro Prestes, do Online Cidadão, que não apenas ilustra o papel do Brasil na nova cultura eletrônica, como prova que o uso da cultura como intermediação dos conceitos de tecnologia e liberdade pode ser a saída mais eficaz para este embate. Ele contou como a grande maioria da população que não é familiarizada à internet se sente desconfortável com as regras impostas pelo computador, deixando pouco espaço para a intuição. Até que ele encontrou um sujeito feliz, passeando pelas páginas, clicando nos links, abrindo novas janelas, pulando de site em site. Entusiasmado, começou a conversar com o novato internauta que, ao perguntado sobre o que ele estava lendo, respondeu, sem pestanejar, que não sabia ler. O fato, que fez a maioria dos presentes na palestra apiedar-se do caso citado, no entanto foi encarado de outra forma por Cassino: “Ele estava desenvolvendo todo o deslumbre, o lado lúdico, e entusiasmado com o universo do computador”, coisa que os outros não conseguiam – pois têm dificuldade de ler. E, alfinetando não apenas o ministro presente como o público do debate, concluiu que “inclusão digital também é para vocês, da cultura”. Ao tratar a cultura como algo alheio a seu universo, Prestes mostrou o imenso abismo no debate eletrônico brasileiro – e, ao mesmo tempo, jogou a corda para o outro lado, disposto a construir a ponte. O lance é saber se alguém vai pegar.

O show de Britto Júnior no Mídia Tática Brasil

O Mídia Tática foi parar na Globo. Quer dizer, deveria ter ido parar, mas no fim gerou esse clássico hit pré-YouTube.

Mídia Tática Brasil






Falando nisso, lembrei do Mídia Tática Brasil, que foi um dos eventos mais importantes da década passada. Num momento em que a cultura digital brasileira começava a engatinhar, o Ricardo, a Gi e a Tati pegaram a idéia do festival holandês Next Five Minutes e misturaram arte de vanguarda, cultura eletrônica, manifestações de rua, comunicação digital e política 2.0 em uma semana de eventos na Paulista em a, entre a Casa das Rosas e a unidade do Sesc ao lado, em março de 2003 (falei bastante sobre a importância do evento quando Ricardo morreu, subitamente, em 2007 – vale passar pelo link pois há vários links para obras dele mesmo). Nele, pela primeira vez, várias gerações e turmas diferentes, mas de mesma mentalidade, tiveram seu primeiro contato umas com as outras, lançando as sementes para movimentações que hoje mostram-se maduros em áreas tão diferentes quanto política, arte e mídia. Desenterro aqui três textos que escrevi sobre o festival na época: um comentário sobre a noite de abertura do evento (uma referência que reverbera até hoje, vide o reencontro de Gil e Barlow no Fórum de Cultura Digital deste ano) e duas entrevistas, uma com Derek Holzer, criador do Next Five Minutes, e outra com Al Giordano, editor do Narco News. Bora lá.