Damo Suzuki em São Paulo

E por falar em krautrock, lembrei de quando o Damo Suzuki – o mítico vocalista do Can, sem dúvida a banda mais importante da história do gênero – passou pelo Brasil, em 2005, no festival 4Hype, que rolou no Sesc Pompéia, e fui ver se tinha algum vídeo disso no YouTube.

E, para a minha surpresa, descobri não só que tinha, quanto eles tinham sido subidas no site pelo próprio Paulo Beto, o PB, que estava pilotando instrumentos eletrônicos no mesmo palco que Damo vociferava seus grunhidos zen. Além do PB, a banda montada para o festival era um mini quem-é-quem do rock experimental paulistano do começo do século 21, reunindo nomes como o Cacá do Objeto Amarelo, o Maurício Takara do Hurtmold, o Sérgio Ugeda do Diagonal, o Miguel Barella (que já passou por inúmeros projetos desde os anos 80), entre outros que não me recordo. O show foi tão hipnotizante quanto o do Hallogallo, mas ia para um nível de agressividade e força que não havia na apresentação do trio de Rother. Afinal, era quase uma big band.

Este mesmo evento ainda contou com apresentações do Wolf Eyes, do austríaco Fennesz, o escocês Kode9, DJ Dolores, Toni da Gatorra, Akira S. & As Garotas que Erraram, Tecno Show e Lívio Tratenberg e eu pude entrevistar e servir de intérprete dos quatro estrangeiros em bate-papos abertos ao público na tarde do dia da apresentação de cada um deles. O papo com o Damo foi especialmente legal porque aconteceu no mesmo dia do papo com o Steve Goodman, o Kode9, que além de ser um dos pioneiros na divulgação do dubstep no Reino Unido, também tem um trabalho como pesquisador e historiador de música contemporânea, e dono de gravadora. Em vez de fazer dois papos separados, juntamos Damo e Steve numa mesma conversa que fluiu para muito além da própria trajetória dos artistas e possíveis observações destes sobre a música experimental no mundo na época, e virou uma discussão boa abordando diferentes visões do que pode ser considerado música hoje em dia – indo para a raiz da definição de conceitos tão diferentes quanto estética, mercado e produção.

Os vídeos acima são curtos e só dão uma idéia do que aconteceu no Teatro do Sesc Pompéia naquele dia – transe coletivo que só poderia ser reproduzido na íntegra, não em pequenos trechos. E é nessas horas que eu lembro que o Sesc grava e arquiva bonitinho todos seus shows. Imagina a quantidade de pérola que os caras não têm guardado nesse baú…

O primeiro show do Hallogallo 2010

E pra quem quiser ouvir como foi o show de estréia do projeto de Rother em agosto desse ano, em Nova York, é só dar uma sacada no link abaixo, agilizado pelo povo da rádio WNYC. Foi um show mais curto do que esse de São Paulo.

HermetoKraut

Ainda sobre o Steve Shelley, ele é o baterista da atual encarnação de uma das metades do Neu!, o mítico e hermético quinto elemento, ao lado do Kraftwerk, do Faust, do Tangerine Dream e do Can, da fundação do pop alemão como o conhecemos hoje. Michael Rother é a metade que comanda o Hallogallo 2010 e convidou o baterista do Sonic Youth para assumir o motorik nas músicas do Neu!, que são a base do repertório do grupo. E a primeira aparição do Hallogallo 2010 do lado de cá do Atlântico acontece em agosto, na cidade-natal de Shelley, quando o grupo toca no Lincoln Center, em Nova York, dividindo o palco com ninguém menos que Hermeto Pascoal. Shelley comemorou a coincidência blipando a incrível “Música da Lagoa”, do velho mago.

Se você estiver por lá nessa época, não perca.

Neu!?


Trecho do documentário Krautrock: The Rebirth of Germany, da BBC

Se você nunca ouviu falar no Neu!, talvez esta seja a melhor época para conhecer o grupo (além da época em que a banda estava na ativa, mas aí você tinha que estar na Alemanha no início dos anos 70). Afinal, ele reencarna com esta formação chamada Hallogallo para uma turnê nos EUA (será que algum produtor brasileiro se anima? Psicodelia minimal barulhenta!) como uma forma de divulgar a caixa definitiva com todos os trabalhos do grupo, incluindo um monte de coisas inéditas.

Michael Rother e Klaus Dinger entraram no Kraftwerk quando o grupo havia acabado de sair da sua fase rock progressivo e começava a se dedicar ao ritmo eletrônico e robótico. Resumido à dupla Ralf Hutter e Florian Schneider, o antigo Organisation adotava um nome essencialmente alemão (“usina de força”) e chamaram primeiro um baterista, Klaus, que depois chamou seu amigo Florian para consolidar o novo grupo. Juntos, gravaram dois discos – mais tardes conhecidos apenas como Kraftwerk 1 e 2, que contam com cones de trânsito, um vermelho e outro verde, em cada capa dos discos – antes das duas duplas se separarem. Ralf e Florian lançaram mais um disco (batizado apenas com o prenome dos dois, tipo dupla sertaneja) antes de chamarem outros dois músicos para oficializar sua carreira robótica, iniciada em Autobahn.

Thomas e Klaus seguiram para um caminho mais perigoso e radical. O Kraftwerk havia encontrado rumo no ritmo repetitivo e mecânico que seria o percurso de todos seus discos até hoje e passeia por paragens conhecidas (auto-estradas, ferrovias, o meio digital, a bicicleta, a tecnologia biônica, a energia nuclear) observando-as à distância, quase alien, melancólico, frio, paranóico e distante, mas apreciando a poesia dos ciclos de repetição criados pelos seres humanos. Já o Neu! preferia conduzir este mesmo ritmo – preciso e interminável – para os limites explorados pelo krautrock, O rock alemão dos anos 70 ganhou fama por experimentar fronteiras sônicas que expandiam o conceito da psicodelia para dentro dos conservatórios e para a selva, duas influências explícitas deste gênero. O Neu! ia para os limites de ambas e o barulho – elétrico, eletrônico, humano – era só a textura em que se sentia mais à vontade. A banda durou três discos e fechou as portas nos próprios anos 70, cada uma de suas metades seguindo rumos paralelos: Thomas seguiu carreira solo e Klaus juntou-se ao La Düsseldorf. Quando esta banda terminou em 83, os dois voltaram a se falar e voltaram a gravar juntos, produzindo um disco (Neu! 86) que só foi ver a luz do dia na forma de piratas nos anos 90.

Durante esta década, a influência da banda passou a ser assimilada principalmente entre bandas de rock alternativo nos Estados Unidos e indies ingleses e os discos da banda, que não eram relançados desde 1983, tornaram-se raridade, objetos de culto e, inevitavelmente, reedições piratas. As tentativas de relançar oficialmente o catálogo do Neu! sempre foi motivo de briga entre Klaus e Thomas, que só conseguiram chegar a um acordo sobre os relançamentos em 2001. A partir daí, os dois voltaram a tentar colaborar juntos, sem sucesso. Até que Klaus morreu em 2008, aos 61, de ataque do coração.

A nova caixa, que será lançada este mês, conta com os três discos originais (Neu!, Neu! 2 e Neu! 75), e dois discos que não foram oficialmente lançados (um maxi-single de 72 e Neu! 86), todos em vinil, um livro de 36 páginas e um estêncil para quem sempore quis grafitar o logotipo da banda por aí sair pintando Neu! pelas paredes da vizinhança. Maiores detalhes sobre a caixa no site do grupo.

Como assim, Krautrock?

Krautrock foi o nome que a imprensa inglesa – rótulo martelado com insistência por John Peel – deu às bandas alemãs que começaram a aparecer a partir do fim dos anos 60, mas em vez de republicar mais uma vez o texto que fiz sobre o gênero, vou apenas linká-lo enquanto também os redireciono para o torrent do documentário Kraftwerk and the Electronic Revolution me sugerido pelo João no post original.

Em tempo: “Kraut” pode ser visto como uma forma pejorativa de se referir aos alemães (“Sauerkraut” é o nome original do chucrute) como também é uma piadinha de duplo sentido com a onda viajandona daquela geração, pois, traduzido do alemão, “Kraut” quer dizer “mato” – e era como os contemporâneos do krautrock se referiam à maconha.

Hoje só amanhã: a quinta semana de 2009

Amanhã não, segunda – nesse domingo não tem Trabalho Sujo.

A volta do Legião Urbana
Gravações raras de João Gilberto ressurgem na internet: tanto as gravações que fez na casa do fotógrafo Chico Pereira em 1958 (o técnico de som Christophe Rousseau fala mais sobre o assunto), quanto o show ao lado de Tom Jobim, Os Cariocas e Vinícius de Moraes em 1962 e as gravações do tempo do Garotos da Lua, em 1950 (que repercutem) •
Lost: Jughead
Sílvio Santos portátil
Dakota Fanning, 15 anos
Little Joy em São Paulo
Moleque chapa no dentista, é remixado e vira desenho
Entrevista: Matt Mason (Pirate’s Dilemma)
Vazou o disco de Lily Allen
Trailers novos: Transformers 2 e Jornada nas Estrelas (com menção ao Cloverfield) •
Rick Levy se aposenta da naite
50 anos do dia em que a música morreu
Banda Calypso é indicada ao Nobel da Paz
Lux Interior (1948-2009)
Legendas.tv fora do ar (e hackers sacaneiam o site da APCMdeu no G1) •
A história do Kraftwerk
Krautrock dance
Emma Watson, 18 anos
Paul’s Boutique comentado pelos Beastie Boys
Soulwax faz set só com introduções de músicas (uma idéia que o Osymyso já tinha tido) •
Alan Moore e a televisão do século 21 (que aproveita para falar de sua participação nos Simpsons) •
Phelps dá pala, devia ter respondido assim, mas é punido; Ronaldo sai em sua defesa
Um herói candango
Vocalista do Gogol Bordello já agitou feshteenha no Rio e vai tocar no carnaval do Recife com Mundo Livre e Manu Chao
Saiu a escalação do festival de Boonnaroo
Forgotten Boys sem Chucky
Comentando Lost: The Lie
A história do krautrock
Entrevista: Lawrence Lessig
Comentando Lost: Jughead
Kraftwerk 1970
Oito episódios para o fim de Battlestar Galactica
Of Montreal tocando Electric Light Orchestra
Fubap de cara nova
“Friday I’m in Love” sem palavras
Todas as mortes em Sopranos
Christian Bale estressa com produtor e é remixado
Montage papai
As calcinhas da Kate do Lost são brasileiras
Lykke Li 2009
Cansei de Ser Sexy x Chromeo
Visita à discoteca Oneyda Alvarenga
Moleque do dentista e Christian Bale são remixados

Breakraut

Ou seria Can Dance? Eniuei: rapeize dançando break no metrô em Nova York. Na trilha, “Vitamin C”.

Vi no Dago. E ainda no ritmo, que tal essa dancinha no supermercado?

Tem essa outra também, solitário no shopping.

E aqui o original ao vivo, em 72.

Falando nisso, acho que vou ressuscitar aquele meu texto sobre o Can e o Krautrock…

Krautrock

Texto velho, do ano 2000. Mas ainda vale.

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Na Alemanha pós-guerra, a cultura nacional foi massacrada pelas soviética e americana como uma forma de aniquilar qualquer indício de retorno do nazismo. Logo as rádios e televisões bombardeavam música americana como começariam a fazer pelo resto do planeta. Mas ao contrário dos outros países, que viram sua música pátria aos poucos fundir-se com o novo padrão musical, a cultura alemã não conseguiu sobreviver em termos de cultura pop. Os poucos artistas locais que faziam sucesso eram pálidas imitações de sucessos estrangeiros.

Até que um grupo de estudantes sentiram o clamor da idade ao mesmo tempo em que os tempos estavam mudando. O ano era o histórico 1968 e os tremores sentidos nas paragens alemãs vieram justamente da arte. Seguindo uma tendência de teatro extremo que quebrava todas as convenções cênicas, incluindo até automutilação e morte no palco, este grupo de jovens se viram presos pelo mesmo tipo de música que seus pares americanos e ingleses. Com bagagem intelectual da faculdade e permissão para criar, os primeiros representantes do chamado krautrock deglutiram os Beatles, os Stooges, Ornette Coleman, o Pink Floyd de Syd Barrett, o Velvet Underground e James Brown ao mesmo tempo, fundindo-os em forma de jam sessions intermináveis baseadas no ritmo, que tornava-se cada vez mais marcial e intenso. Pioneiros na música eletrônica, eles a usaram como principal ferramenta de manipulação sonora. E criaram uma música cujo legado se extende à medida que o tempo passa.

Por muito tempo, o krautrock era visto como apenas um apelido para as bandas de rock progressivo da Alemanha. Não está errado, embora induza ao erro. Como os ingleses que inventaram o prog rock, os alemães eram jovens músicos que encontraram uma forma de explorar as fronteiras da música auxiliados pela técnica. Mas enquanto na Inglaterra sonhavam com a Idade Média e com solos gigantescos, na Alemanha os principais nomes do krautrock deixavam o ritmo tomar conta. Vindo da música negra (Can), da experimental (Faust), da eletrônica (Neu!), do rock de Detroit (Ash Ra Tempel), do free jazz (Cluster), da psicodelia (Amon Düul II) ou simplesmente de máquinas (Kraftwerk) o ritmo é fator fundamental na caracterização do krautrock. Usando-o como fio condutor por experimentações sonoras diversas, o rock alemão do começo dos anos 70 transformavam o ritmo numa porta para uma quarta dimensão musical, onde não importa quanto tempo dura uma canção e sim o transe que o ouvinte é submetido.

A influência do krautrock na cena pop mundial é muito maior que notória. Tanto subgêneros inteiros da música eletrônica (trance, ambient, techno, house, drum’n’bass, technopop) quanto as “novas formas” de criação e gravação propostas pelo pós-rock são quase que inteiramente criados do nada por estes alemães esquisitos. A lógica do sampler nasceu dele, quando a máquina sequer existia, com o baixista Holger Czukay, do Can, fazendo malabarismos e maravilhas com dois microfones e dois gravadores. New wave (Talking Heads, Pere Ubu, Devo) e pós-punk (Fall, PiL, Gang of Four, Suicide, toda a cena no wave nova-iorquina) procuraram discos de kraut para inspiração. A fuga das formas de gravação tradicionais antecipou o que diferentes bandas como Sebadoh, New Order, Pavement e Butthole Surfers acabaram fazendo.

Foram explorados os limites do barulho, da música étnica, da performance cênica, do som eletrônico, da sonoplastia e do improviso. O próprio rap só sobreviveu porque Afrika Bambaataa foi um dos primeiros a mostrar o ritmo dos alemães às massas, abrindo os limites do que pode ser música para o infinito na música popular mundial. Sem contar o Stereolab, que deve os sistemas circulatório e motor ao rock hipnótico dos germânicos. E David Bowie, que dedicou os anos punk à descoberta do mantra eletrônico do gênero morando em Berlim, onde compôs a trilogia Low/ “Heroes”/ Lodger. Sonic Youth, as bandas da gravadora Flying Nun, Stone Roses, Mouse on Mars, Spacemen 3, My Bloody Valentine, Aphex Twin, Brian Eno, Cabaret Voltaire, Mercury Rev, Throbbing Gristle, toda cena shoegazer, Bardo Pond – nomes de alto calibre devem e mostram respeito ao rock alemão do começo dos anos 70. É um espectro grande suficiente para ser conhecido.

Mas mesmo ganhando popularidade por diferentes campos da música, o krautrock ainda é um segredo para o ouvido popular. Talvez seja ainda por um bom tempo. O universo de ritmo e experimentação desencadeado por esta geração de músicos é grande o suficiente para que o termo seja um equivalente à música erudita alemã, o krautrock como uma legião de cérebros que fazem às vezes de um Beethoven moderno, descendente do Bach da música eletrônica, Karlheinz Stockhausen. O tempo não dirá – ele já diz

***

Eu tenho outro texto sobre o Can em algum lugar, mas não tou achando… Mas achei um sobre Kraftwerk, quando eles tocaram pela primeira vez no Brasil, em 98. Vai na seqüência.

Kraftwerk

Eis o outro texto que eu falei:

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A tecnologia está presente em nós. Hoje, precisamos de diversas máquinas para os afazeres diários – carros, computadores, telefones, rádios, aparelhos de TV, geladeiras, máquinas de lavar, forno microondas, energia elétrica, motores a explosão, telecomunicação, energia nuclear. O século 20 mudou drasticamente a cara do planeta Terra, ao consolidar a raça humana como seus novos dinossauros – reis soberanos sobre todas as outras espécies, ditador arbitrário do destino de qualquer outra fauna ou flora. E a força que fez com que o homem – um ser pequeno, menor que um cavalo – se tornasse capaz de tudo isso não é natural.

Inventadas pelo ser humano, as máquinas facilitavam qualquer atividade que se pudesse inventar, das triviais às complexas. E mudaram completamente nossa noção de universo. Hoje, podemos falar em estar do outro lado do planeta em menos de um dia. Em saber o que está acontecendo em diversas partes do mundo agora. Você pode conversar com gente de toda a parte do mundo agora. Esquentar comida em segundos e congelá-la em minutos. Tomar banho quente quando quiser. Até ouvir música. Pense um mundo sem energia elétrica (apenas uma das invenções) e imagine o quanto estamos integrados às máquinas.

Eu disse integrados. Nós somos as máquinas. Ao mesmo tempo em que elas invadiram nosso mundo, nos robotizaram. Hoje tudo é calculado, programado, otimizado. Com a máquina veio a indústria e com esta, as jornadas de trabalho. Se temos horário rígido de trabalho e uma forma semelhante de se relacionar com nossa sociedade. Somos arquivados em apartamentos e casas sem conhecermos uns aos outros. Somos mais íntimos de nossa TV, do vídeo, do carro do que de um irmão, do vizinho. Conhecemos mais celebridades internacionais que personalidades locais.

Somos homens-máquina. Vivemos num mundo dominado por elas e para elas. Perdemos emprego para as máquinas, o que mostra que, aos olhos da sociedade atual, somos tão importantes como peças, como máquinas. Ou, mais aterrorizante ainda, elas são tão importantes como nós. Partindo deste conceito, dois alemães de Düsseldorf criaram todo o seu conceito musical. Ralf Hütter e Florian Schneider faziam parte da cena musical alemã do final dos anos 60, quando o rock foi assimilado por grupos como Can, Amon Düül, Ash Ra Tempel, Tangerine Dream e Guru Guru. Mais tarde rotulados de krautrock, esta geração de músicos vinha de uma formação clássica e observava o rock como uma forma de transgredir valores eruditos. Assim, obcecados por americanos tão diferentes quanto James Brown, Velvet Underground e Ornette Coleman, estes alemães foram os primeiros a querer fazer vanguarda com o rock daquele lado do Atlântico, enquanto os ingleses se “cabeçavam” com psicodelia, metal e progressivo.

No meio daquela cena estava o quinteto Organisation, que contava com Ralf e Florian no elenco. Psicodélico até a medula, o grupo venerava Syd Barrett, embora não soubesse que rumo ir. Aliás, até sabiam, só que vislumbravam a democracia numa banda e a desordem era a ordem vigente. Do Organisation, o único traço que ficaria na carreira da dupla, que logo sairia para desenvolver seu projeto definitivo, era a necessidade de transgredir as regras do rock. Com seu novo grupo, o Kraftwerk (cujo nome quer dizer “usina de força” em alemão, os dois passavam a adicionar a música eletrônica e a tentar organizar, de forma sintética, o caos do rock. Por rock, é bom esclarecer que, como vimos antes, aqueles alemães entendiam rock, soul, pop, trash, bubblegum, o que fosse. A influência da música pop no Kraftwerk do começo é crucial para entendermos como eles chegaram à raiz de seu som. A banda ainda contava com mais dois integrantes no começo da carreira – o guitarrista Michael Rother e o baterista Klaus Dinger – que deixariam a banda depois de dois discos para formar o também lendário Neu!.

Como Kraftwerk, Ralf e Florian gravaram dois discos, batizados simplesmente de Kraftwerk 1 e Kraftwerk 2 (com um cone de trânsito verde e vermelho nas capas, respectivamente), no começo dos anos 70. Com a saída de Rother e Dinger, os dois gravam um terceiro disco, mas assinando como Ralf und Florian. Estes três discos são cruciais para o entendimento do groove hipnótico que a banda desenvolveu a partir de sons artificiais. Os três discos também assistem a construção do estúdio da banda, o mítico KlingKlang, e sua nobre coleção de aparatos e engenhocas de manipulação artificial de ondas sonoras.

Mas a grande virada na carreira da banda aconteceria em 1974, quando gravavam o lendário Autobahn. Ao lado de mais dois novos músicos – os percussionistas Klaus Roeder e Wolfgang Flür -, eles se reinventavam como banda. A principal mudança foi simplesmente abandonar o rock de vez e se entregar às maravilhas da música eletrônica. Outra mudança radical foi de visual. Se antes Hütter parecia um bicho-grilo e Schneider um dos caras do Monty Python (John Cleese, certamente), o novo visual do grupo cortava seus cabelos curtinhos, colocava-os em ternos simétricos, com a barba bem feita e um olhar distante, vazio. Assinado por Emil Schult, que passaria a se dedicar a todo imaginário visual da banda, das capas de disco aos shows, além de escrever letras, dando-lhe o título de “quinto Kraftwerk”.

Mas a mudança principal era musical. Sem o rock, a banda perdia suas raízes terrenas e soava inteiramente artificial – mas com a mesma pegada da música pop. Sintetizando-a em laboratório, o Kraftwerk trabalhava com teclados Moog e Farfisa, vocoders, osciladores de som, LFOs, baterias eletrônicas e seqüenciadores caseiros (construídos pela banda), sintetizadores e ruídos diversos (vocais, entre eles), criando uma música mântrica e envolvente, binária e melódica, sintética e, incrivelmente, dançante. Comprovando seu potencial pop, uma versão reduzida da faixa título (um épico hipnótico de 22 minutos, uma sinfonia louvando “o carro como um instrumento musical”, segundo Hütter), freqüentou as paradas americanas.

Mas o Werk não estava interessado em paradas e, em seus próximos discos, Radioactivity (de 75) e Trans-Europe Express (de 77), fariam pelas ondas de rádio e pelo sistema ferroviário europeu o que Autobahn fez com os carros e as auto-estradas. E, no decorrer destes três discos, o grupo apura melhor o som criado no disco de 74. Preciso e robótico, o quarteto cria bases circulares que funcionam como ritmo, usando a repetição arbitrária como groove. Sua importância na história da música pop pode começar a ser medida por este período: todo movimento new-romantic inglês (Duran Duran, Human League), o technopop (Depeche Mode), o industrial (Nine Inch Nails), parte da new wave (Fall, B-52’s, Devo), a fase Berlim de Iggy Pop e David Bowie (e robotização de Brian Eno), a disco music (Giorgio Moroder, Donna Summer), o pop robô de Gary Numan, o electropop do New Order, os electrofunks Planet Rock (Afrika Bambaataa) e Trouble Funk Express (Trouble Funk) e o techno de Detroit (Mantronix, Cybotron). Todos eles devem os olhos da cara aos três primeiros e didáticos discos do Kraftwerk.

Com Man-Machine, de 79, eles resumiam sua obra ao comparar o ser humano com as máquinas que descreveram nos primeiros discos. Trans-Euro Express já trazia traços desta filosofia (em Showroom Dummies e Hall of Mirrors), mas é com Man-Machine que o Kraftwerk finalmente fala sobre a raça humana. E vê uma raça robótica, servindo máquinas que foram criadas para servi-las. Mas o grupo alemão não pregava a submissão às máquinas ou uma insurreição contra elas. Contemplava um mundo em que homens e máquinas funcionassem de forma complementar, harmoniosamente, como um circuito integrado. O Kraftwerk é o som desta utopia, um universo em que a trilha sonora é o som tocado por máquinas “que nos tocam”, como eles mesmo afirmam. O conceito do Homem-Máquina, apresentado de forma dramática em The Robots (cujo refrão, no original alemão, quer dizer “Nós é que somos os robôs!”) e em todo Man-Machine. Nas entrevistas, declaram que são uma máquina completa, um circuito integrado entre ser humano e máquina.

Computer World é só a continuação deste conceito. Fala da máquina que rege nossos tempos, o computador, que pode ser simples como uma calculadora de bolso, que nos reduz a números e senhas. Também corrói-nos com paranóia ao cogitar que os computadores seriam uma forma de controlar as pessoas (“Negócios, números, dinheiro, gente/ Crime, viagens, comunicação, entretenimento”). O disco saiu em 81 e marcou o primeiro grande hiato na carreira do grupo.

Durante cinco anos, o quarteto ficou imerso em boatos, enquanto desenvolviam a obra definitiva, o um disco cujo conceito seria a música pop, chamado de Techno Pop. Em meio à expectativa surgiu o boato que Hütter havia morrido ou estaria em coma profundo após cair de bicicleta. Não era coincidência o fato do primeiro fruto das sessões de Techno Pop a ver a luz do dia foi o ciclístico Tour de France, de 84, que venera a famosa competição em que se dá uma volta inteira na França de bicicleta. Composto magistralmente sobre percussões formadas pelo barulho da respiração humana, Tour de France mostrava que a banda ainda tinha gás para dar novas Autobahns, o disco foi um sucesso entre os incipientes (para o mercado) breakdancers e só existe em CD em cópias piratas.

Electric Café frustrou as expectativas em 86. Techno Pop havia entrado em crise e o conceito de Electric Café (a tecnologia sendo responsável pela integração das comunidades e idiomas) é um suproduto do que o disco originalmente seria. Mas em meio ao mar de sintetizadores robóticos criado pelos anos 80, o Kraftwerk cantando Boing-Boom-Tschak era tão importante quanto Little Richard berrando Wah-Bap-Loo-Bap-Wap-Bang-Boom no meio dos anos 60. Então o grupo fechou as portas e se submeteu a outra tarefa: atualizar o estúdio KlingKlang para a tecnologia digital.

O fruto deste update aconteceu em 91, com The Mix. Nele, o grupo reabilitava uma série de clássicos para as pistas dos anos 90. Em nossa década, a importância do Kraftwerk é incontestável. Além dos movimentos citados anteriormente, o grupo alemão é peça-chave na construção de sons tão distante quanto Stereolab (que brinca com grooves brancos da fase pré-Autobahn e com as engrenagens sonoras dos primeiros discos) e Spiritualized (cujo líder, Jason Pierce, é fanático pelo drone constante das músicas do Werk desde os tempos do Spacemen 3), toda a cena techno, ambient, big beat e house, parte da cultura hip hop, metade da turma do pós-rock, e ecos distantes em gente como Sonic Youth, Beastie Boys e DJ Shadow. Sem aparecer para o público desde então, o grupo voltou à estrada em 95, num lendário concerto no festival Tribal Gathering. De lá até hoje, se extendem numa turnê longa e pausada, que passou pelo Brasil no ano passado, num show histórico (pois esta será a última turnê da banda) que só veio confirmar que, como disse um amigo meu, vivemos num mundo em que o Kraftwerk sonhou há trinta anos!.