“She had kind eyes…”

4:20

Impressão digital #0058: Fringe

E a minha coluna deste domingo no Caderno 2 foi sobre o final da terceira temporada de Fringe – ou melhor, sobre a importância da ficção científica.

Realidades paralelas
Fringe e a ficção científica

Não tenho como falar do final da terceira temporada de Fringe pois esta coluna foi escrita horas antes da exibição de seu último episódio, The Day We Died, que foi ao ar na noite de sexta-feira, nos Estados Unidos. Também não vou entrar em detalhes que possam antecipar alguma revelação para alguém que está começando a assistir à série agora ou que a acompanha através da retransmissão feita no Brasil pelo canal pago Warner. Vou falar sobre Fringe, mas sem entregar o que está acontecendo na série agora. Pois o assunto de hoje não é o roteiro complexo que atordoa até quem cogita o impossível e o inusitado (temas, aliás, recorrentes na história).

Fringe é o seriado mais importante na TV hoje por explorar as fronteiras mais mirabolantes da ciência e da ficção científica. Logo na abertura somos bombardeados por uma nuvem de tags que apresentam termos considerados impossíveis pela ciência tradicional: teletransporte, precognição, psicocinese, clarividência, percepção extrassensorial, projeção astral, criogenia, mutação, universos paralelos. O termo “fringe” indica limite e quando se refere à ciência fala especificamente daquela que é ridicularizada ou desprezada pelo cânone tradicional.

Na série de J.J. Abrams, o mesmo criador de Lost, acompanhamos o cientista Walter Bishop (interpretado magistralmente por John Noble), que foi internado no meio dos anos 80 em uma instituição psiquiátrica e solto em nosso presente por ser a única pessoa que pode saber lidar com fenômenos estranhos que começaram a acontecer sem motivo aparente.

Acontece que alguns episódios se passam nos anos 80, e a abertura do seriado é magistralmente recriada como se ele fosse exibido naquela época. E os termos que surgem na tela são bem mais familiares a nós: computação pessoal, nanotecnologia, clonagem, cirurgia a laser, engenharia genética. Termos que poderiam ser encarados na época como ficção científica, mas que hoje são apenas ciência.

Eis a função do gênero: apontar os rumos para onde a ciência da vida real pode seguir. Não duvide se, em alguns anos, os termos da abertura de Fringe dos anos 10 se tornarem tão comuns quanto os dos episódios que se passam nos anos 80.

Fringe: Mas, mas…

Lembra do suspiro seco e surdo que fechava todo episódio de Lost, deixando aquela sensação atordoada de desequílibrio na alma? Imagine ouvi-lo em estéreo, dois sons diferentes e idênticos aos mesmo tempo, sendo percebidos por cada metade do cérebro? Assim foi o final da terceira temporada de Fringe, um feeling J.J. Abrams percebido em diferentes dimensões, com autorreferência comendo solto (ou isso aí em cima não é a caverna de Lost?). Depois eu falo mais…

Uma teoria para o futuro de Fringe, por Delfin

Como eu, o velho Delfin tá ansioso demais com o final da terceira emporada do melhor seriado de hoje em dia – a ponto de me cogitar uma teoria sobre o episódio dessa sexta-feira. Vamos a ela:

Unidade – Uma teoria para o futuro de Fringe

Não tem jeito. A cada episódio de Fringe, a melhor série de ficção científica desta temporada, mais as coisas se tornam irremediavelmente simples. Inevitáveis. Fique certo de que este texto pode conter spoilers para você que, ao contrário de mim, não está aguardando o último episódio da terceira temporada nesta sexta-feira. Se você consegue se conter em relação a isso, por favor, não leia. Se você, no entanto, gosta de uma boa teoria, esta é uma delas.

É preciso dizer que a morte de Osama bin Laden vem em boa hora, em todos os sentidos. No discurso feito na madrugada do último domingo para segunda-feira, anunciando oficialmente o feito da tropa de elite dos seus Navy Seals, Barack Obama disse em alto e bom tom: “E hoje, vamos pensar de volta no sentido de unidade que prevaleceu em 11 de setembro”. Pois, no final, a unidade é tudo o que realmente importa. Também é assim em Fringe.

Na série, desde o início, vemos exemplos claros disso. Logo no episódio-piloto, temos a reunificação de filho e pai, Peter e Walter Bishop, após anos de separação. Temos também o nascimento de um novo tipo de unidade entre Olívia e seu noivo, o recém-falecido agente John Scott. Ao passar dos episódios, vemos que a maior parte deles, em algum nível, sempre trata do tema da unidade, seja para sua realização ou para seu rompimento. Pode não ter sido proposital, mas é um dado que se torna fundamental no final desta temporada, e que certamente dará a tônica da próxima.

Mas há outro tipo de unidade envolvida: a numérica. O elemento único, no sentido mais puro do termo. Se você insistiu em ler até aqui, mesmo não gostando de spoilers, é sua última chance de voltar atrás, aviso dado. Pois somos colocados e confrontados, também desde a primeira temporada, com o fato de que Peter Bishop está morto e vivo no mesmo universo. O que leva à irrefutável conclusão de que existe outro universo, que quase tudo o que conhecemos existe em duplicidade, que Peter é uma peça-chave em tudo isso. E que, para consertar um erro do passado, os Observadores conduziram os dois universos, que deveriam coexistir pacificamente, para ativar um plano de contingência milenar, que estaria pronto caso algo desse errado: a ativação de uma máquina construída e planejada pelos ainda misteriosos Primeiros Homens. Uma máquina que, como todas as máquinas, pode ser utilizadas para fins pacíficos ou malignos, que não difere em nada, nesse sentido, dos mecanismos de energia nuclear, ou mesmo de simples meios de transporte, como os aviões utilizados para a destruição das Torres Gêmeas.

Vocês são fãs de quadrinhos? Não são? Nessa hora, deveriam ser. Especificamente, da DC Comics. O leitor dos heróis da casa de Super-Homem, Batman e Mulher Maravilha já passaram pela mesma angústia que o fã de Fringe passará nesta sexta-feira, mas há 25 anos.

Naquela época, aconteceu o evento cataclísmico que mudou não apenas a história da editora, mas dos paradigmas dos quadrinhos heróicos mundiais: a Crise nas Infinitas Terras. Pois, na DC, isso era uma verdade (que cientistas muito sérios começam a reconhecer e estudar há algum tempo): existem infinitas versões do planeta Terra e do próprio universo. E elas estavam sendo, uma a uma, destruídas.

As forças que moviam esta destruição estavam além da capacidade humana de compreensão, mas também havia uma força contrária, lutando para preservar, de algum modo, a vida como a conhecemos. Num lance ousado, quando restavam apenas cinco universos a serem dizimados, esta força decide colocar um plano em prática e faz o impensável: UNIFICA os cinco universos, com suas cinco vias lácteas, cinco sóis e cinco planetas Terra. E aquilo que um dia foi um multiverso se tornou, pragmaticamente, um universo unificado, com o que havia de melhor de cada mundo. E que, com uma união incrível de seres superpoderosos, suplantou o mal e fez com que este universo simples, mas completamente desconhecido e com uma história totalmente alterada, se tornasse o lar de todos, dali para a frente.

No caso da DC Comics, foi uma decisão comercial: a editora havia comprado tantas editoras e tantos heróis que não se encaixavam em seu universo heróico que, no fim, tiveram que desatar o seu nó górdio de um jeito inesperado. E que funcionou, afinal de contas.

No caso de Fringe, e você já entendeu o que eu estou sugerindo, a união dos universos é inevitável. É sintomático que a escolha da unificação recaia sobre Peter Bishop, porque ele é único em mais de um sentido: ele não apenas existe vivo em apenas um universo, mas também é o primeiro ser único a ultrapassar e viver nos dois universos mostrados na série. Universos que, por causa de uma falha do observador Setembro, foram imersos em um processo de contato, contaminação e subsequente destruição mútua. Desde então, é sugerido pelo próprio observador que há uma chance de corrigir essa falha. O que todos pensamos, na época, é que essa correção era deixar o Peter que conhecemos, vindo de outro universo, ser salvo por um Walter Bishop que não era o seu pai de verdade.

Uma mudança que, afinal, nos trouxe até o momento em que Peter Bishop, que era o único que poderia acionar a máquina dos Primeiros Homens por motivos ainda não completamente esclarecidos, entra no mecanismo e, então…

Unidade.

Mas no que esta unidade implica? Primeiramente, que existia uma unidade primordial e ela está restabelecida agora – e estes seriam os motivos de existirem máquinas idênticas e que se acionam em todos os universos quando uma delas é acionada, implicando também que os Primeiros Homens viveram em uma Terra unificada, pré-poliverso. Mas, principalmente, que nada será como antes. Pois, numa unificação universal, não podem existir dois de cada – como Peter claramente percebeu no penúltimo episódio da temporada, ainda que estivesse confuso quanto a isso. Mas se Peter Bishop (e todos aqueles que não possuem duplos em outro universo) está com um futuro garantido, qual versão dos outros seres vivos sobreviverá à unificação universal? Seria um processo aleatório ou, como na teoria da evolução, sobrevive o ser que melhor se adaptaria ao processo – ou, para sermos simplistas, o mais forte?

Se for assim, estaremos preparados para ver uma unificação universal na qual a Olívia que conhecemos bem sobrevivesse, mas tendo um filho único, que não é verdadeiramente dela (mas agora é), além de uma família novamente unificada, com mãe, irmã e sobrinha, todas vivas? Mas o pior de tudo, estaremos prontos para encarar o fato indiscutível de que, nesses termos, o Walternate seria o Walter sobrevivente? Sendo assim, num universo unificado, em que ambos os universos anteriores fossem destruídos, Walternate culparia Peter, seu próprio filho, pela destruição de seu mundo, prometendo destruir o dele – e, deste modo, não teríamos mais o doce e velho Walter, mas o maior vilão de todos, a mente mais brilhante do planeta e que é dono da maior empresa de tecnologia do mundo, a Massive Dynamics?

Ainda assim, resta uma questão preocupante: porque, em um universo unificado, como vimos no final do último episódio, o mundo ainda precisaria de uma divisão Fringe?

Será uma 4ª temporada, seja como for, de grandes surpresas e que promete ser, mais do que a atual temporada, uma sequência de episódios inquietantes, como uma ciência de borda ainda mais instigante e fora do comum, porque baseada em uma unificação de tecnologia de dois universos distintos e, portanto, inesperada.

Fringe nos aproxima, a cada dia, de um futuro inevitável, que pode até não ser tão próximo, mas que não está tão distante quanto muitos querem nos fazer crer. Pois, perceba, a série é muito mais conectada com o nosso tempo do que podemos imaginar. Basta lembrar do 11 de setembro de 2001. Hoje, quase dez anos depois, temos o aparente fecho de um círculo de eventos, com a morte de Osama bin Laden. Mas a placa que Peter Bishop vê no futuro indica que não é bem assim, que talvez os círculos não se fechem realmente.

Pois você deve ser informado: na DC Comics, vinte anos depois de sua unificação, nem tudo foram flores e um vilão, que era a mente mais brilhante e manipuladora de sua época, fez surgir novamente os múltiplos universos. O que não faria uma mente perturbada como a de Walternate, que certamente não aceitará a destruição de seu mundo, para ter sua realidade de volta?

O dia em que todos, como nos conhecemos, vamos morrer é esta sexta-feira. Depois disso, nos veremos em outra vida, brother.

Fringe: diretamente da próxima sexta-feira…

Sério, Fringe tá insuportavelmente bom.

Ah, Fringe…

…se você não está acompanhando a série, não siga vendo essas fotos (que cacei no Fringe Forum). Não tem spoiler aí, mas não custa não olhar, se você não está vendo a série:

Mas… acho que veremos mais um universo: o amarelo! Talvez JJ Abrams esteja mesmo orquestrando sua grande obra-prima neste seriado, cuja terceira temporada termina nessa sexta-feira.

Fringe e a função do humor no cientista louco

No prefácio que fiz à nova seção do Trabalho SujoErudito x Popular -, um comentário do Hector me apresentou à revista Matéria Obscura, criada pelo Denis e pela Luciana para se aprofundar em assuntos que por via de regra não são tão aprofundados como deveriam. Pedi aos dois (um casal? Não sei) a liberação de dois textos de sua quarta edição (especial Fringe!) para dar cotinuidade à discussão entre a academia e o pop.

O papel de Walter Bishop
Luciana Silveira
Spoilers: O artigo traz informações sobre a terceira temporada da série “Fringe”.

“Fringe” não é comédia – longe disso. O questionamento ético dos estudos de Walter Bishop e William Bell, os traumas sofridos pela agente Olivia Dunham desde a infância e o choque entre os universos não são piada. Mas, como tantas outras produções de ficção científica, a série precisa se preocupar em mostrar um pouco de humor para funcionar.

Em um breve apanhado sobre o humor no gênero, Wilkins (1) defende que ele serve como uma forma de amenizar o esforço do público de acreditar naquela ficção. Uma risada abaixa as resistências do espectador, tornando-o mais receptivo para a proposta mirabolante daquela trama. Assim, uma piada bem colocada faz com que o debate ético, os abusos e o apocalipse de “Fringe” tornem-se sérios.

Mas o humor também desempenha outra função em “Fringe”: ele intensifica nosso relacionamento com os personagens.

Um pouco de loucura, um pouco de canela
Em 1985, após a morte de seu filho Peter no universo de cá, o brilhante cientista Walter Bishop viajou para o Outro Lado e acabou sequestrando o outro Peter, que foi então criado por ele e sua esposa.

Deve-se mencionar que a intenção original de Walter era apenas levar o medicamento que curaria o filho do Walternate (2), mas seus planos foram modificados porque o frasco do medicamento se quebrou na travessia, quando Nina Sharp tentou impedi-lo. Mesmo assim, o fato é que Walter sequestrou o filho de seu duplo.

Também deve-se mencionar que Walter se esforçou bastante para tentar devolver Peter para o Outro Lado. O problema é que os esforços de Walter foram a intensificação de seus experimentos com crianças, afetando de forma irreversível as vidas de Olivia Dunham, Simon Phillips, James Heath, Nick Lane, Susan Pratt e tantas outras.

E, como Walternate bem sabe, a viagem de Walter entre os universos foi catastrófica para os dois lados, iniciando a acelerada deterioração da Terra-2, que agora começa a afetar também a Terra de cá.

Walter não é um herói. Com todas as suas boas intenções, ele talvez seja um vilão maior que o Walternate. E, mesmo assim, torcemos pelo Walter. Gostamos do Walter.

Não porque ele está lutando do “nosso” lado – nós gostávamos dele muito antes que a disputa entre os dois universos estivesse escancarada na trama de “Fringe”. Nós gostamos do Walter porque ele é engraçado. Simplista? Talvez. Mas todos nós queremos aquela pessoa para dividir aquela longa caminhada pela praia e, principalmente, para nos fazer rir – e isso também vale para aquela noite de sexta-feira que você passa na companhia de uma série de TV.

Um bom exemplo foi o reencontro de Walter com uma de suas cobaias, Simon Phillips, que desenvolveu a habilidade de ouvir os pensamentos de outras pessoas:

Simon Phillips: Bacon, unicórnios, o aniversário do Peter, pitada de canela… Z2 = Z12 + C… Lago Reiden. O que isso significa, hein? O que você está tentando fazer comigo?
Walter Bishop: Nada. Minha mente apenas faz isso às vezes. (3)

A cena, a princípio, é um momento de tensão. Por causa de sua habilidade, Simon tornou-se incapaz de conviver com outras pessoas e sofre efeitos físicos severos quando exposto a elas. Seja por suas lembranças, seja por ter lido os pensamentos de Walter, Simon reconhece no cientista o responsável por sua condição. Walter, apesar de sempre mostrar-se um pouco maravilhado com a ciência, sabe bem que deixou sua obsessão levar sua pesquisa além do que é eticamente aceitável, e sente algum tipo de culpa pelas vítimas que fez.

Mesmo assim, a descrição do fluxo de pensamentos de Walter – misturando ciência, unicórnios e, claro, comida – é tão walteriana que a situação torna-se engraçada. Rimos em meio à tensão, da mesma forma que rimos com situações envolvendo uma vaca ou milk shake ou lembranças de LSD durante uma autópsia. E, enquanto rimos, perdoamos a culpa de Walter e vemos nele alguém com quem dividiríamos uma mesa de bar.

Analisando outro seriado – “Firefly”, coincidentemente enquadrado no mesmo gênero –, Natalie Haynes defendeu a mesma facilidade em simpatizar com os personagens:

Nunca questionamos por que deveríamos segui-los, porque estávamos do seu lado desde o início, e isso porque gostávamos deles e pagaríamos uma bebida para eles. (4)

No caso de “Firefly”, o humor estava distribuído entre todos os personagens. Já em “Fringe”, a situação é bastante diferente. O humor de Peter Bishop existe, mas é o sarcarmo desenvolvido ao longo de anos sentindo-se deslocado, no universo errado. E os traumas da agente Olivia Dunham fazem dela uma personagem mais fechada e séria (5). No trio central, apenas Walter carrega a obrigação de despertar a simpatia do espectador – e o faz muito bem.

Existem três fatores essenciais na definição do comportamento de Walter – ou quatro, se considerarmos o abuso de substâncias químicas recreativas. O primeiro e mais óbvio é o retorno de Peter a sua vida, e de forma relativamente harmoniosa (6).

Além disso, a longa internação na clínica para pacientes mentais teve efeito positivo em seu humor. Após 17 anos confinado e improdutivo, Walter parece se revitalizar com o retorno ao laboratório. Finalmente, temos sua condição mental: Walter teve partes do cérebro removidas para que o conhecimento da viagem entre dimensões se tornasse inacessível (7), e também mostra sequelas da longa internação. Suas excentricidades estão mais fortes, e sua auto-censura é praticamente inexistente.

Walter não é simplesmente louco – ele é radiantemente alegre.

Duplos e disputas
A importância do humor de Walter para o funcionamento de “Fringe” tornou-se mais clara com a terceira temporada da série, que teve episódios ocorridos no Outro Lado, na Terra-2. Nesse universo, encontramos duplos dos personagens centrais e uma divisão Fringe oficial e mais importante, já que a deterioração da Terra-2 acontece de forma muito mais rápida do que a daqui.

A divisão Fringe da Terra-2, aliás, é extremamente carismática. Embora Fauxlivia tenha cometido seus “pecados” trocando de lugar com Olivia, ela é também confiante, divertida e talentosa. Scarlie pode não ser o Charlie de antes, mas está vivo. E Lincoln, a novidade, mostra-se extremamente dedicado ao trabalho – mas um trabalho que ele adora, e não um que lhe causa sofrimento. E os casos da Terra-2 também não ficavam devendo nada ao lado de cá, com a vantagem de apresentar aquelas pequenas (ou não tão pequenas assim) diferenças que prendem a atenção dos fãs.

Mas Walternate, ainda que menos presente em cena, coloca sua sombra em todos os episódios do Outro Lado – reforçando a falta do Walter Bishop que conhecemos e amamos. Sofrendo a dor da perda do filho e a crescente instabilidade de seu Universo, tragicamente danificado no processo, Walternate lidera a “guerra” contra nossa dimensão, na condição de Secretário de Defesa dos Estados Unidos.

Walternate está pronto para fazer sacrifícios para defender a existência de seu universo, mas possui limites morais mais claros que o Walter de cá. E ele tem motivos para seu comportamento, e motivos para suas jogadas. Mas, mesmo que possamos compreender seus motivos, temos dificuldades em simpatizarmos com ele.

Isso não ocorre porque Walternate é o inimigo da “nossa” dimensão, mas porque é o inimigo da dimensão de Walter. Não sentimos nossa existência ameaçada pela guerra entre as dimensões – a imersão na ficção ainda não chegou lá – e até temos interesse nos casos do Outro Lado e nos agentes mais confiantes da divisão Fringe. Mas rejeitamos que a dimensão remanescente (ou vitoriosa) seja aquela em que o divertido Walter é substituído pelo amargo Walternate.

(1) “Why science fiction movies need a little comic relief
(2) Nome dado ao “duplo” de Walter Bishop na outra dimensão, chamada de “Terra-2”.
(3) “Concentrate and Ask Again” (“Fringe”, 3–12)
(4) “Girls, Guns, Gags – why the future belongs to the funny”, p.33
(5) A própria Olivia se diferencia de sua versão da Terra-2 descrevendo-a como “divertida” e de “sorriso fácil” em “Concentrate and Ask Again” (“Fringe”, 3–12).
(6) Adulto, Peter reconhece a fragilidade de Walter e mostra-se mais gentil, perdoando dívidas novas e antigas. Quando descobriu sobre sua verdadeira origem, Peter compreensivamente se afastou de Walter, mas foi capaz de reconstruir o relacionamento mais tarde.
(7) No episódio “Grey Matters” (“Fringe”, 2–10), Walter mostrou-se mais lúcido e sério quando teve as porções do cérebro reimplantadas.

Fringe e o drama do duplo

E esse é o texto do Denis, da mesma edição do Matéria Obscura dedicada ao Fringe que eu citei há pouco.

A grama é mais verde do lado de Lá
Denis Pacheco
Spoilers: O artigo traz informações sobre a terceira temporada da série “Fringe”.
Desde pequeno aprendi com o misto de ditado popular e título de filme antigo que a felicidade não se compra. Ainda que a literatura de auto-ajuda, os tratamentos esotéricos e alguns romances de banca de jornal tentem argumentar o contrário, o conceito de felicidade imbuído em mim e, provavelmente, em você é o de uma busca indelével que se sustenta em si. Seja uma luz no fim do túnel, seja uma meta tangível traçada numa planilha eletrônica, a ideia de felicidade passa por todos nós como algo a se almejar.

Por mais intangível que seja, essa noção de contentamento com a vida, permeia absolutamente todas as minhas decisões. É em busca dela que escolho a roupa que vou usar para mais um dia de trabalho, o caminho que farei para voltar para casa, a comida que irei preparar no jantar desta noite ou o destino das minhas férias em agosto. Entretanto, as escolhas que faço para apaziguar a necessidade instintiva de me fazer constantemente feliz levam-me na direção oposta. É nessa hora que revejo meus atos e abuso do recurso literário “e se” para imaginar como seria minha vida se outras decisões tivessem sido tomadas. Seria eu mais feliz se tivesse cursado História e não Comunicação Social? Deveria ter feito aquele intercâmbio em 2001 ao invés de me apressar a entrar numa faculdade?

Enquanto fico aqui supondo o que meu eu-alternativo estaria vivendo num outro universo, em “Fringe” os personagens interpretados por Anna Torv (Olivia Dunham), Lance Reddick (Philip Broyles), Kirk Acevedo (Charlie Francis) e Seth Gabel (Lincoln Lee) têm a chance de saber exatamente como suas vidas seriam se as circunstâncias fossem outras. E, para nossa surpresa, suas vidas na Terra paralela são sim mais felizes, com uma notável exceção.

Antes de explicar em que bases assumi que os personagens da Terra-2 (1) são mais felizes ou menos infelizes do que os desse universo, faz-se necessário explicar em quais condições diferenciadas vivem esse conturbado conjunto de pessoas.

1985 – A ruptura entre Universos

Dentre os grandes eventos de “Fringe”, aquele ocorrido em 1985 é demarcadamente o mais importante para definir o que diferencia os universos. Acometido pela morte prematura do filho, Peter, o cientista Walter Bishop expande o conceito de janela dimensional – uma construção capaz de espionar a realidade de um mundo alternativo, mais avançado tecnologicamente, mas virtualmente idêntico ao nosso – e atravessa para o Outro Lado pretendendo salvar a versão alternada do filho. Trazendo-o para o nosso lado para curá-lo de uma doença misteriosa, Walter causa danos irreparáveis no tecido da realidade, cujos efeitos só podem, inicialmente, ser sentidos do lado de Lá.

A partir de então, para os habitantes da Terra-2, certas verdades sobre seu universo foram escancaradas assim como os buracos negros que invadiram seu cotidiano. Pelo mundo, anormalidades da física criaram instabilidade e forçaram governos a assumirem posturas radicais para garantir a segurança da população e o Bem Maior. Nomeado Secretário de Defesa, Walternate (a versão Terra-2 de Walter Bishop), revelou ao planeta que o sequestro de seu filho e a instabilidade física universal eram parte de uma mesma equação. A partir daquela declaração, Walternate ganhou poder para criar uma divisão especializada em combater tais anormalidades utilizando-se até mesmo de um recurso definitivo de quarentena conhecido como “amber”. (2)

Crescendo sobre a ameaça de que seu universo fosse eventualmente tragado por uma infinidade de buracos negros, os futuros agentes da Fringe Division da Terra-2 foram naturalmente apresentados a duas potenciais abordagens em relação a vida: a efemeridade ou o fatalismo.

Abraçando a noção de efemeridade, Fauxlivia, Scarlie, Coronel Broyles, Capitão Lee, amadureceram com uma perspectiva bastante distinta da vida, ao contrário de suas duplicatas do outro universo. É a partir dessa diferenciação circunstancial que irei trabalhar:

Olivia/Fauxlivia

Quando conhecemos a Olivia Dunham na primeira temporada de “Fringe” imediatamente percebemos o quão rígida e desconfiada a agente do FBI poderia ser. Vítima do abuso do padrasto durante sua infância, Olivia cresceu como uma vítima. Perdendo a mãe ainda jovem e se tornando responsável pela irmã mais nova, Dunham acumulou responsabilidades suficientes para esquecer os anos em que fora sujeita a experimentos contestáveis daquele que viria a ser seu colega no FBI, e o responsável pela ruína quântica da Terra-2. Solitária, a agente Dunham que encaramos como protagonista é segura de si, mas sente dificuldade de expressar qualquer outra emoção num amplo espectro de situações.

Já ao sermos apresentados a Fauxlivia, sua contra-parte alternada, pudemos enxergar quase que o oposto do que entendíamos como núcleo central da personagem. Fauxlia não perdeu a mãe que, supostamente, a criou sozinha, sem a possível influência ou companhia de um padrasto violento. Apesar de ter perdido a irmã e a sobrinha para uma complicação médica, Olivia não tem dificuldades em se aproximar dos colegas de trabalho ou de cultivar um estável relacionamento amoroso. Imune aos experimentos de Walternate, Fauxlivia possuiu – ao que sabemos – uma infância comum, afetada não particularmente pelo estado instável de seu universo. Como agente da Fringe Division, ela atua na linha de frente dos casos mais complexos do lado de lá, sendo responsável, inclusive, por ativar a quarentena de Amber 31422 em áreas atingidas por eventuais buracos negros, lacrando-se junto com centenas de cidadãos numa bolha estática que não representa nem morte, tampouco a vida.

Ainda assim, passando por situações que extrapolam o absurdo, Fauxlivia – assim como muitos de seus colegas – parece encarar os fatos surreais que a cercam como parte de uma rotina corriqueira. Armada com a certeza de que seu mundo pode desabar, a Dunham alternativa construiu para si uma vida saudável, com relacionamentos familiares e interpessoais que fazem dela uma personalidade suficientemente forte para dominar, por um tempo, a mente enfraquecida da Olivia.

Marcada pela possessão e posterior retorno para seu universo, Olivia contempla a felicidade de Fauxlivia numa conversa com Peter Bishop:

Olivia: Antes de você saber que não ela era eu. Ela era divertida, certo? Ela tinha um sorriso fácil, quero dizer, é o que você disse.
Peter: Olivia, eu queria que você soubesse que eu notei a diferença. Mas eu pensei que era por minha causa, por causa de nós. Eu pensei que eu estava trazendo um lado diferente em você. Mas nunca foi porque eu queria estar com ela mais, porque eu não queria. (3.12)

Ciente de que sua outra versão, cuja vida havia sido reorganizada por um conjunto de decisões diferentes, ainda que assombradas pelo fantasma de um iminente apocalipse, era mais satisfeita do que ela própria, resta a Olivia remediar suas futuras escolhas tendo Fauxlivia como parâmetro inatingível de bem-estar.

Charlie/Scarlie

Substituído por uma cópia transmorfa, o Charlie que conhecíamos como parceiro de Olivia Dunham morreu prematuramente no universo principal de “Fringe”. Com um casamento bem sucedido e alguns missões que quase lhe escaparam do controle, Charlie parecia, até certo ponto, satisfeito com sua vida até que em “Unleashed” (1.16), em uma de suas conversas finais com Walter Bishop após uma infestação interna de larvas geneticamente alteradas, o agente revelou brevemente suas inseguranças quanto a trazer uma criança para um mundo cheio de possibilidades assustadoras. Ocultando de sua esposa, na cena final, as complicações quase letais do dia de trabalho.

Scarlie surge ainda no finalmente da primeira temporada, em pequenos flashs motivados pelos saltos de Olivia por entre dimensões e a primeira coisa que nos marca sobre o personagem é sua cicatriz no rosto. Mais endurecido do que seu duplo, Scarlie aparenta não ser casado; ainda assim, não parece carecer de afeto recebendo flertes como o da cientista em “Immortality” (3.13). Intimo de seus colegas de trabalho, tanto quanto Charlie, Scarlie sobreviveu ao ataque do mesmo monstro geneticamente alterado, mas não sem consequências. Alegadamente vivendo sem a cura para as larvas que crescem em seu organismo, Scarlie não parece se deixar abater pela condição crítica, deixando-se levar pela extraordinária realidade com pitadas acentuadas de bom humor.

Broyles/Coronel Broyles

Pouco sabemos sobre Philip Broyles, o chefe da divisão do FBI responsável pelos casos que desafiam a compreensão humana. Divorciado, sem filhos e com uma mesa posicionada diante da janela de seu escritório, Philip é representado como alguém reservado. Seus relacionamentos fora da divisão não são expostos aos colegas que mal podem questioná-lo sobre seu recente divórcio durante a primeira temporada (1.18). Sua ligação com Nina Sharp, possivelmente romântica (2.1), é brevemente abordada, mas não chegamos a compreender realmente o peso desse relacionamento. Entre desconfianças e ordens racionais, Philip se faz presente na equipe da maneira que melhor lhe convém, sendo, na maioria das vezes distante.

Do Outro Lado, o Coronel Broyles, ainda que mantendo sua postura militarizada e analítica a frente de uma Fringe Division muito mais especializada, teve a chance de dividir elementos de sua vida privada com os colegas. Vitima de um caso da divisão ele próprio, o Coronel teve sua rotina familiar violentamente alterada por sequestrador que raptou seu único filho. Ainda casado, ele vive uma rotina familiar amorosa e completa. Suficientemente completa para que o coronel fosse capaz de estender a mão para Olivia, uma suposta inimiga infiltrada em sua equipe, dando sua própria vida, ainda que inadvertidamente, para ajudá-la em sua jornada de volta ao seu universo.

Lincoln/Capitão Lee

O único que conhecemos primeiro na versão da Terra-2, o Capitão Lee é tão ou mais destemido do que sua equipe. Com quase 90% do corpo severamente queimado (2.23), Lee passou parte de sua apresentação como uma vítima em recuperação. Graças a tecnologia do lado de Lá, sua cura completa aconteceu algumas semanas depois da visita de Walter, Olivia e Peter ao seu universo. Durante o processo de recuperação da pele, Lee não deixava de transpirar personalidade a frente dos casos da Fringe Division. Mesmo sem qualquer indicativo de passado ou de relacionamentos extra-profissionais, o agente mais dedicado da divisão não parece ter quaisquer dificuldades em fazer amizades, especialmente com Fauxlivia e seu namorado, que divide com ele o segredo de uma eventual proposta de casamento. (3.13).

Quando colocado em comparação com sua contra-parte, o agente do FBI Lincoln Lee, o Capitão destoa-se ainda mais. Confiante como todos os que vivem na Terra-2, Lee é o líder natural de sua equipe após o falecimento do Coronel Broyles, enquanto o agente Lincoln não parece desfrutar do mesmo sucesso profissional, estando preso a um caso misterioso que parece incapaz de resolver por um ano. Sem equipe aparente ou colegas mencionáveis, o agente Lincoln que se entrega a uma parceria acidental com Peter Bishop, não esboça nem a confiança tampouco a sagacidade de seu duplo de outra dimensão.

Walter/Walternate

Do manicômio para o cargo de Secretário de Defesa dos Estados Unidos, Walter e Walternate trilharam diferentes rumos em suas vidas paralelas. Cruzando caminhos quando um deles decidiu atravessar dimensões, os dois Bishops podem ser facilmente considerados antagonistas na mitologia de “Fringe”; entretanto, a complexidade de seus papéis e a distinta noção de felicidade que apenas tangencia ambos os personagens merece ser analisada com maior detalhamento.

Ao perder seu filho para uma doença que não conseguiu curar a tempo, Walter Bishop – cujos princípios éticos já não encontravam limites mesmo antes de sua transgressão física – se tornou responsável por um desastre possivelmente apocalíptico. A condenação das duas realidades foi suficiente para sobrecarregar sua consciência e forçar seu melhor amigo, William Bell, a tomar medidas drásticas para afastá-lo de seu pleno potencial. Do Outro Lado, Walternate se utilizava de todo seu poder cerebral para descobrir o paradeiro de Peter, seu filho raptado. Por mais um descuido de seu duplo, o cientista-chefe da Bishop Dynamics se viu diante da mais extraordinária resposta.

Diferentes dos personagens citados até agora, ambas as versões de Walter encontram sérias dificuldades de se adaptar a rotina de seus universos de forma saudável. Enquanto Walter viu sua família se desintegrar após o suicídio de sua esposa e o afastamento de Peter, Walternate manteve seu casamento – e uma amante (3.15) –, sua empresa e foi capaz de ampliar seu poder político, já que permaneceu na linha de frente da defesa do próprio universo.

Infeliz e desacreditado, Walter se deixou entregar a própria loucura até ser resgatado pelo FBI em circunstâncias extremas. Passo a passo, o restaurado Walter Bishop reencontrou seu bom humor entre os casos que desafiavam a compreensão. Entretanto, ainda que reapossado de um simulacro de estrutura familiar, o peso da culpa por suas ações passadas – incluindo aí questionáveis experimentos com seres humanos e seus desdobramentos – tornam esse Walter incapaz de criar uma relação saudável com os que o cercam, e consequentemente, incapaz de interagir com outras pessoas abaixo de sua escala de inteligência.

Para Walternate, ocultar emoções, interagir com colegas e esboçar um aparente estado de satisfação com a própria vida é definitivamente parte de uma rotina casual. Preocupação com a estabilidade de seu universo a parte – se é que podemos colocar tal fato de lado –, Walternate parece ter tomado todas as decisões acertadas em seu universo, sendo inclusive incapaz de cruzar limites morais que Walter ignoraria em nome da Ciência. Portanto, podemos concluir que a ausência de Peter não faz de Walternate um personagem infeliz por definição, mas sim, um personagem figurativamente incompleto, buscando incessantemente o reestabelecimento de uma ligação paternal.

Se a miséria de um é sofrer pelas escolhas realizadas, a fonte do sofrimento do outro é padecer pelas decisões daquele que jamais deveria ter interferido com o andamento dos universos alternativos.

A questão verdadeiramente intrigante que cerca o erro de Walter Bishop e o cerne de toda essa especulação sobre os graus de felicidade dispersos entre as duas dimensões de “Fringe” é tão complexa quanto a explicação científica dos fenômenos ocorridos durante as três temporadas da série, assim como seus desdobramentos. Se Walter não tivesse cruzado as dimensões e alterado fundamentalmente a trama da realidade, especificamente a realidade do Outro Lado, teriam todos esses personagens tomado as mesmas decisões? Seriam eles destemidos diante da eventual destruição de seu mundo? Teriam todos o mesmo grau de apreciação pela vida que parece inferior a de suas contra-partes do lado de cá? Estaria essa alegada felicidade atrelada ao erro de um único homem?

(1) Vocabulário criado pelo fandom, tal como a denominação oficial ‘Lado de Lá’ ou ‘Outro Lado’ criadas a partir da tradução livre do título do episódio 2.22 “Over There, Part 1”
(2) A substância química chamada Amber 31422 foi desenvolvida pelo Secretário Bishop para conter micro-buracos negros que causavam danos devastadores ao tecido do seu universo. No Outro Lado, a Fringe Division utiliza esta tecnologia para colocar em quarentena as perigosas fendas no espaço assim que assinaturas de energia prejudiciais são detectadas.

Multifringe


M


U


L


T


I

Foi o próprio seriado quem abriu o jogo, na já clássica seqüência de cinco imagens/letras que espalham dentro do episódio. Agora é esperar