O grande romance americano de David Foster Wallace

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Escrevi sobre a tradução do calhamaço Graça Infinita, a grande obra de David Foster Wallace, para a revista Brasileiros do mês passado.

Entretenimento Fatal
Com mais de mil páginas, sendo 100 delas de notas de rodapé, o desafio Graça Infinita, de David Foster Wallace é o último candidato a Grande Romance Americano do século passado e finalmente é lançado no Brasil

A busca pelo Grande Romance Americano atravessou todo o século passado motivando autores hoje consagrados e assombrando outros que tentavam fugir desse Santo Graal. O posto foi criado como uma forma de distinguir a literatura da antiga colônia inglesa da produção britânica e logo clássicos como Moby Dick e As Aventuras de Huckleberry Finn se configuraram como os primeiros candidatos ao posto. Mas à medida em que o século 20 foi passando e os Estados Unidos foram se confirmando como o país mais influente do mesmo período, o título passou a pesar sobre ombros de diferentes autores e obras: F. Scott Fitzgerald, William Faulkner, Vinhas da Ira, John dos Passos, O Apanhador no Campo de Centeio, Saul Bellow, Lolita, O Arco-Íris da Gravidade, John Updike, William Gaddis, Don DeLillo. Todos confrontados com o desafio de traduzir a essência deste país autodenominado América em páginas de papel.

Mas um nome candidatou-se a esse trono como se aceitasse um desafio. Um metadesafio, afinal. O século americano chegava ao fim e um autor considerado prodígio dedicou três anos de sua vida a uma obra que não apenas sintetizasse a importância cultural dos Estados Unidos para o resto do mundo nos últimos cem anos como também funcionasse como uma radiografia para uma sociedade que passou a primeira metade do século cultivando uma nova altivez e nobreza, ao alcance de todos, e a segunda metade remexendo nas próprias entranhas enquanto perguntava-se o que havia acontecido de errado. David Foster Wallace completava 34 anos no mesmo fevereiro de 1996 que via o lançamento de sua obra-prima precoce, o exaustivo e enciclopédico romance Infinite Jest, que finalmente é lançado no Brasil, como Graça Infinita. O título não é retirado apenas de uma frase qualquer de Shakespeare, mas do momento em que Hamlet encara o crânio sem vida de Yoruck que comumente associamos ao monólogo em que nos encontramos com o “ser ou não ser”. Em vez disso, o príncipe dinamarquês confronta a ossada do bobo-da-corte e contempla-a. “Ah, pobre Yorick!”, suspirava o personagem, “uma pessoa de infinita graça, da mais fina fantasia, carregou-me às costas umas mil vezes, e agora, quão abominável me parece.” A caveira na capa da edição brasileira escancara a sutil constatação hamletiana sobre os EUA.

No livro homônimo, Graça Infinita é um filme experimental realizado pelo senhor James Orin Incandenza Jr., que antes de dedicar-se ao cinema, era especialista em óptica, fundou a Academia de Tênis Enfield e cometeu suicídio enfiando a própria cabeça num microondas. Mas ao contrário de outros filmes que produziu, Graça Infinita – que também é conhecido apenas como Entretenimento ou “samizdat” – era considerado perigoso por induzir seus espectadores a um estado de desinteresse por tudo que não fosse o próprio filme – uma degradação psicológica que inevitavelmente levava à morte.

Eis o objetivo de uma caçada estática conduzida pelas mais de mil páginas de um único romance, em que notas de rodapé ao final do livro tomam conta de nada menos que cem outras páginas. É um calhamaço de dimensões atordoantes que não deixa barato ao ser desbravado: David Foster Wallace nos conduz por montanha russa de estilos, habitada por personagens verborrágicos em monólogos de frases gigantescas. Quase não há parágrafos e a sensação de estar à deriva em um mar de palavras é constante. É um livro mais extenso do que os longos romances russos – e que a própria Bíblia.

Graça Infinita nos apresenta aos Estados Unidos de um século 21 em que não houve um 11 de setembro, em que o consumismo, a publicidade e o mercado de entretenimento deformaram de vez a América do Norte. Não há nem mais os Estados Unidos como o conhecemos e sim uma mutação entre a Alca e a Otan chamada Organização das Nações da América do Norte (referida apenas como Onan – isso mesmo). Neste novo país, não existem preocupações ecológicas e todo o lixo tóxico é catapultado na antiga região da Nova Inglaterra, no nordeste dos antigos EUA. Os anos não são mais referidos com a numeração tradicional e são vendidos às marcas que pagarem mais – e assim os primeiros anos do século em que vivemos são referidos como “o ano do Whopper”, “o ano do Frango Maravilha Perdue” ou “o ano da fralda geriátrica Depend”.

Neste mundo habitam dois personagens que acompanharemos pelas centenas de páginas: o prodígio no tênis Hal Incandenza, filho caçula do autor do filme, e o ex-viciado Don Gately, que habitam dois universos diferentes – a já citada Academia de Tênis Enfield e a Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool. Através dos dois visitamos duas dos principais prazeres da escrita de David Foster, o tênis e reuniões de Alcóolatras Anônimos, situações que viveu pessoalmente. A primeira por ter sido, ele mesmo, um jovem tenista, o que garante páginas e páginas do esporte por escrito, por vezes exaustivas como uma partida no saibro. E Wallace começou a frequentar reuniões do AA não por causa da bebida, mas por seu vício passivo em assistir televisão. A partir das reuniões ele pode perceber as transformações em diferentes personagens, além da relação da América do século 20 com qualquer tipo de dependência – sendo o consumismo e o entretenimento de massas duas de suas principais manifestações. Os dois personagens, paralelamente, ainda fazem o leitor passear por descrições sobre todo o tipo de drogas e efeitos diretos ou colaterais, como se parte do autor fosse habitada por William Burroughs e Hunter Thompson.

Mas não se engane: não são os únicos temas de Graça Infinita. Seu número assustador de páginas funciona como uma passarela para Wallace desfilar seus extensos conhecimentos em áreas completamente diferentes, além de costurá-los com observações inusitadas e frases deliciosamente escritas. E aqui é possível perceber seu parentesco com Thomas Pynchon, Kurt Vonnegut, Don DeLillo, William Gaddis e John Barth. Por mais que atravesse sagas maçantes ou procedimentos burocráticos, ele sempre o faz de forma elegante e exagerada, eloquente e exaustiva – às vezes de todas estas formas. Em seu segundo romance, David Foster Wallace exibe uma maestria típica dos grandes nomes da literatura pós-moderna norte-americana, encarnando, no papel, a “literatura da exaustão” do manifesto de Barth.

E entre relatos intermináveis e narradores implacáveis, acompanhamos Hal e Don em busca do tal filme mortal, cada um com suas próprias motivações, enquanto seguimos o grupo terrorista separatista de Quebec Les Assassins des Fauteuils Rollents, cujos integrantes sem pernas querem usar Graça Infinita como arma. Entre estes personagens há centenas de outros, desde a família Incandenza aos alunos da Academia de Tênis, passando pelos pacientes da Casa Ennet – todos falando sem parar sobre todo tipo de assunto.

O sentimento de desamparo e solidão da leitura interminável ao ser contraposto à avalanche de descrições detalhadas, teses fundamentadas e muito material técnico transforma o próprio livro numa provocação em si mesmo e fica evidente o metadesafio encarado pelo autor. Ao contrário do filme que o batiza, Graça Infinita não induz o leitor à catatonia passiva – é uma missão a ser cumprida, uma aventura racional (até demais) num bizarro mundo de letras. “Queria fazer um livro triste”, disse o autor em entrevistas dadas à época do lançamento, frisando que era a tristeza que afluía quando não se há mais motivo para buscar-se a felicidade, a principal motivação dos cidadãos norte-americanos.

O grande rei pálido

Como o criador de Graça Infinita, o filme, o autor de Graça Infinita, o livro, também deu fim à sua própria vida. David Foster Wallace havia parado de tomar as medicações para depressão e já havia tentado o suicídio no início de 2008, mas no dia 12 de setembro daquele ano, foi para a garagem de sua casa, em Claremont, na Califórnia, escreveu uma carta de duas páginas, deixou arrumado o manuscrito de seu livro mais recente, o inacabado The Pale King, amarrou seus braços e se enforcou. Tinha 46 anos e sua morte consagrava de vez um dos principais novos nomes da literatura norte-americana da virada do século.

Graça Infinita foi seu maior feito artístico, mas estava longe de ser o único. Além do livro com mais de mil páginas, ele escreveu apenas outros dois romances, The Broom in the System (que o lançou em 1987) e o póstumo The Pale King, que concorreu ao Pulitzer do ano em que foi lançado, 2011. Além destes três livros, ainda lançou três coletâneas de contos: Girl with Curious Hair (1989), Brief Interviews with Hideous Men (1999) e Oblivion: Stories (2004).

Sua figura caricata e sempre usando uma enorme bandana na cabeça contrastava com a personalidade tímida e quieta que mal sabia se comportar em entrevistas. Rato de biblioteca, Wallace foi criado por pais acadêmicos, além de ter sua vida na universidade, inclusive como professor.

Contratado como escritor freelance, David Foster Wallace publicou nos principais veículos dos EUA textos sobre todo tipo de assunto: a indústria de efeitos especiais para o cinema, o atentado do 11 de setembro, um festival de lagostas no Maine e muito tênis. Seu artigo sobre o tenista Roger Federer para o New York Times em 2006 (“Roger Federer as a Religious Experience”) é um dos grandes textos deste século.

A orelha do Goonies

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Escrevi a orelha para o roteiro romanceado de Goonies, que acaba de ser lançado por aqui pela Darkside. O livro foi escrito por James Kahn a partir do roteiro de Chris Columbus ainda nos anos 80 – época em que Kahn havia se especializado em adaptar os novos filmes para adolescentes (O Retorno de Jedi, Indiana Jones e o Templo da Perdição, Poltergeist) para o formato livro. A tradução do livro foi feita pela comadre Cecilia Giannetti e o texto que escrevi segue abaixo:

 

Franco-Atirador

Do romeno Mihai Velcescu.

Entrevista: J.G. Ballard


Foto: tim2ubh

Em 2005, entrevistei o mestre por fax, pra Folha. Até nos falamos por telefone, mas ele preferiu responder a entrevista em sua máquina de escrever, no papel timbrado de seu escritório. Pelo telefone, ele elogiou algumas perguntas que fiz, mas guardo até hoje o papel enviado à distância, com um “good luck” e a assinatura do mestre no pé do papel. Um dia, quem sabe, enquadro.

Feira de atrocidades

Em “Terroristas do Milênio”, J.G. Ballard descreve a revolução da classe média para elucidar questões sociopolíticas atuais

Apesar de não se considerar mais um escritor de ficção científica (“A ficção científica morreu quando o homem pisou na Lua, em 1969”), J.G. Ballard, 74, ainda navega pelo gênero que o consagrou. Seu mais novo livro, “Terroristas do Milênio”, não cogita as destruições apocalípticas de suas primeiras obras, embora continue lidando com um dos principais aspectos da ficção científica: futurologia como laboratório de ensaio para idéias.

Em “Terroristas…”, à moda de seus livros mais recentes (como “Super-Cannes”, 2000), Ballard cogita previsões imediatistas para tentar elucidar charadas sociopolíticas do presente. Pelos olhos do psicólogo desiludido David Markham, ele nos apresenta uma revolta elitista de um condomínio fechado londrino como uma nova versão para a revolução.

Descreve a classe média como um novo proletariado que se rebela contra a força opressora da mesmice inventada para mantê-la em seu lugar. Liderada pelo esguio e carismático pediatra Richard Gould, esta nova revolução desordena a estrutura da rotina com pequenos atentados ao dia-a-dia -em paralelo a outro tipo de atentado, como uma bomba que explode no aeroporto de Heathrow logo no início do livro. Leia a seguir a entrevista que o escritor concedeu à Folha.

Como em seus últimos livros, “Terroristas do Milênio” parece funcionar ao mesmo tempo como uma profecia sombria e um sonho esperançoso. O sr. se considera um otimista?
Sim, mas temos de ser realistas a respeito do mundo em que vivemos. Acho que vivemos uma época muito perigosa. A velha ordem mundial -o Ocidente contra o bloco soviético- acabou, e ninguém sabe quem são seus verdadeiros aliados. Tanto o Islã quanto os Estados Unidos são vistos como uma ameaça. Nossa cultura de entretenimento deixa as pessoas entediadas. A política, a monarquia e a religião fracassaram. Será que o consumismo consegue manter tudo junto? Talvez o esporte, especialmente o futebol, seja o único cimento que previne toda a estrutura de desabar.

As questões políticas estão se tornando parte da textura do século 21? Como o sr. relaciona isso com o fracasso dos sistemas políticos do século passado?
A política fracassou completamente no mundo inteiro e não é mais capaz de resolver nossos principais problemas -intolerância étnica e racial, desigualdades de renda, epidemias globais, a destruição do ambiente, o aquecimento global, ajudar o Terceiro Mundo e tantos outros. Onde a política falha, soluções mais perigosas e radicais tendem a aparecer -como a Alemanha nazista, uma cruzada religiosa e racial fingindo ser um movimento político.

A classe média está ficando entediada consigo mesma?Acho que sim. Todas as pessoas, mesmo as mais bem-sucedidas da classe média, têm necessidades espirituais e criativas profundas, que não podem ser satisfeitas com uma bolsa da Gucci, uma viagem para Miami ou um BMW novo. Precisamos achar significado para nossas vidas. Hoje vivemos como crianças que podem comer o quanto quiser dentro de uma fábrica de chocolates.

À medida que o novo século começa, as pessoas tornam-se mais individualistas devido à desilusão para com as instituições ou começam a agir de uma forma mais coletiva? Isso é consciente?
As pessoas de hoje são muito menos individualistas do que eram há 50 anos. Nós vivemos uma época muito conformista. Um número enorme de regras e convenções sociais domina nossa vida -limites de velocidade, como educar os filhos, quando e onde eles devem ir à escola, como tratar nossas mulheres e maridos, que drogas podem ser tomadas ou não, e por aí vai. A maior parte das grandes decisões econômicas de nossas vidas hoje são decididas por companhias multinacionais, pelo Banco Mundial e pelo FMI. Mas as pessoas são incansáveis, e vemos isso em crimes sem sentido; o ataque do 11 de Setembro foi um protesto contra o modo de vida ocidental e sua cultura de entretenimento corrupta, que aplaca nosso impulso religioso.

Qual é o papel do terrorismo atualmente? É uma questão de desestabilizar o status quo ou são as Forças Armadas dos fracos?
Ambos. Atos terroristas espetaculares, como o 11 de Setembro, podem desestabilizar nações inteiras e até mesmo o mundo, a ponto de os Estados Unidos atacarem o Iraque como uma resposta cega e movida por emoções. Quando as pessoas se sentem enfraquecidas, elas voltam-se para suas emoções, como fizeram Bush e os novos conservadores depois do 11 de Setembro, e as emoções são muito mais perigosas do que ambição fria.

Revolução e crise são sinônimos para a mesma coisa, vistas por ângulos diferentes?
A maior parte das revoluções fracassou, e aquelas que foram bem-sucedidas tenderam a esmaecer, deixando apenas rastros ou continuaram fluindo, como rios por baixo da terra.

O entretenimento matou o sonho?
Nossa cultura de entretenimento atual sufoca tudo e redefine a realidade, ao, com efeito, provar que a cultura de entretenimento é a nova realidade.

Por que sempre parecemos viver em um momento crucial da história?
A mudança acontece tão rapidamente hoje que nós podemos sentir as variações no terreno. Mas é uma época genuinamente desafiadora. Em contraste, os anos 70 e 80 foram épocas mais calmas, até a queda do Muro de Berlim e a derrota do comunismo global.

Qual é a sua opinião sobre a era eletrônica?
A internet é um fenômeno impressionante, com o mesmo potencial de mudar o mundo que o rádio e a TV. Ela já começou a expandir a consciência humana. Tudo pode acontecer. Surgirá a primeira religião da internet, a primeira aldeia, o primeiro movimento político. Percebo uma mudança na consciência humana.

O sr. ainda se considera um escritor de ficção científica?
Não. Parei de escrever ficção científica nos anos 60. A ficção científica morreu quando o homem pisou na Lua, em 1969. Mas, de muitas formas, a ficção científica venceu, foi bem-sucedida ao atingir seus alvos e foi absorvida pelo mercado comercial.

O sr. usa a internet?
Uso o computador da minha namorada -adoro a poesia acidental que se encontra na rede. No site do litoral da Califórnia, em que você pode flutuar como um pássaro por horas. Você pode explorar silos nucleares em desuso. Acompanhar a migração de aves equipadas com rádio em viagens enormes entre a Europa e a África.

“Terroristas do Milênio” poderia acontecer nos EUA?
Já está acontecendo nos EUA. Cultos religiosos estranhos, movimentos antiaborto, hostilidade para com a evolução darwiniana. Esse grupos de protestos são, em sua maioria, da classe média, insatisfeitos com a ordem atual.

Com qual personagem o sr. melhor se relaciona, Richard Gould ou David Markham? O intelectual em dúvida é o par perfeito para o revolucionário carismático?
Acho que Richard Gould está mais próximo de mim; concordo com suas idéias, mas não com suas ações. Como reconciliar ambas as coisas é o grande problema.

Quais são os melhores e piores legados do século 20?
O melhor: liberdade individual, a dedicação da ciência em fazer um mundo melhor e o sentido que somos um mesmo planeta e uma mesma família humana. O pior: a facilidade com que um ditador ambicioso pode escravizar as pessoas, seja fisicamente como Stálin, ou mentalmente, como Hitler. É triste, mas as duas coisas devem ocorrer novamente.

Como o sr. vê o declínio da Europa e dos Estados Unidos enquanto faróis culturais dos séculos passados? Quem deverá sucedê-los?
A Europa e a América são lugares muito diferentes. Os Estados Unidos têm uma cultura de entretenimento popular que é atrativa, mas que não satisfaz, como um hambúrguer ou um pacote de chicletes. A Europa tem uma cultura mais elitista, que não é simples de ser compartilhada, mas que satisfaz muito melhor. Mas a nova supereconomia chinesa mudará tudo.

E o Brasil?
Eu visitei o Rio em 1969 e fiquei muito surpreso com sua vitalidade, charme e as mulheres mais lindas do mundo. O Brasil sempre ocupou um lugar especial na imaginação ocidental, graças em parte ao Rio, em parte à nossa imagem da Amazônia e suas florestas imensas, que representam um sonho profundo do coração primevo da humanidade. Desejo-lhes tudo de bom!