Assim Sou Eu

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Bizz com os Paralamas na capa (Pedro Só matando a pau na matéria), número 200, entrevistão meu com o Odair José (tem até foto minha, meninas) que eu só posto, por enquanto, o mesmo tanto que a Bizz liberou. Quando a 201 hit the bancas, eu posto tudo. E falando nisso, o podcast da revista teve a minha participação nos vocais, falando justamente sobre o OJ brasileiro. Escuta aqui. Ah, a foto é do Coskoman, grande Eugênio.

Qual sua primeira memória musical?
Meu pai mexia com terra, na região de Morrinhos (interior de Goiás), perto de Caldas Novas. Chegava a época da colheita, ele fazia uma confraternização. Foi quando vi um trio com dois violeiros e um sanfoneiro. Achei legal e pedi um violão a minha mãe, de Natal. Mas meu pai me deu um cavaquinho, porque, pelo meu tamanho, era mais adequado (ri). Tinha um cidadão que tocava violão de sete cordas na banda da cidade e me ensinava todo dia um acorde. Naquela época, eu tocava boleros, modas de viola, música italiana, americana. Aos 12 anos, quando me mudei para a capital, Goiânia, apareceram os Beatles. Eu cantava todas as músicas dos Beatles, em serenatas, numa bandinha chamada Monft.

Como é que é?
Monft – eram as iniciais da gente: Marcelo, Odair, Nadir, Fayed e Tuca… Depois fui convidado para ser crooner de banda de baile, os Apaches, que era famosa em Goiânia. Cantava Beatles, Animals… Mandava qualquer inglês, mas cantava (ri). Daí, comecei a compor. Depois, fui tocar no conjunto do maestro Marquinhos, que era mais profissional. Ele tinha um programa na televisão e eu fazia a parte considerada “jovem”, que os cantores dele não gostavam. Então, conheci o Roberto Carlos. Nosso conjunto abriu o show dele em 1965, quando eu tinha 18 anos. Fui conversar com o Roberto, falei que tinha umas músicas e ele falou: “Vai pro Rio, aqui não tem condições…”. E nisso, eu fui mesmo. Saí fugido, na calada da noite, não falei pra ninguém. Fui na ilusão de encontrar o Roberto. Fiquei um ano sem dar notícias, você imagina a cabeça da minha mãe…

E a parte do deslumbre com sucesso, dinheiro, drogas, mulheres, como você lidou com isso?
Ganhei e gastei muito dinheiro à toa. Se eu tivesse guardado a metade, estaria quaquilionário. Mas não me arrependo. Às vezes faz falta, mas não virei músico pra ganhar dinheiro. Se eu tivesse trabalhado a vida inteira no barzinho da praça Mauá, seria feliz do mesmo jeito. Sobre mulheres, curti minhas namoradas, mas sempre fui homem de uma mulher só. Não sei viver sem mulher. Até me questiono: “Será que quando eu morrer vai ter mulher pra onde vou?” Porque se não tiver, vai ser uma merda. Tem umas partes da Bíblia que Jesus diz que lá em cima, ou lá embaixo, pra onde a gente vai, não tem disso. Então, tá mal. Drogas: experimentei maconha e cocaína, mas não faziam a minha cabeça. O baseado me deixava muito zen, até demais. Sou meio marcha lenta, e aquilo me deixava mais lento ainda. A cocaína me deixava três dias com o olho arregalado, também não funciona. A minha droga sempre foi a cachaça. Não a cachaça mesmo, mas um uísque, sempre gostei de uísque, e ultimamente tenho gostado de um bom vinho. E de vez em quando faz um calor danado e uma cervejinha cai bem.

Essa pecha de cafona não te incomodava?
Gosto é uma coisa de cada um. Nunca tive mágoa na minha vida. Sempre li os comentários ao meu trabalho e nunca me magoei. Agora mesmo, na Folha de S. Paulo, o Evangelista (Ronaldo Evangelista, também colaborador da BIZZ) comparou o tributo que fizeram pra mim (Vou Tirar Você desse Lugar) com o meu disco novo, dizendo que Só Pode Ser Amor não teria novidade, que é o que as pessoas esperam do Odair José. A gravadora não gostou. Mas o que ele falou é a pura verdade, o disco é o Odair José. E não era isso que eles queriam? Tenho uma música chamada “Cadê Você?”, que parece o “Parabéns a Você” de tão simples. Mas só ela, cantada por mim ou por outros artistas, já vendeu mais de 7 milhões de discos. Agora, vai fazer uma música dessas! Fazer música cheia de acordes, de coisinhas pra lá e pra cá, é mais fácil de fazer do que “Mamãe Eu Quero”. Outro dia eu estava assistindo a TV e passou uma entrevista com o Carlos Lyra e ele falou uma coisa tão fraca: “Você sabe que nós, o pessoal da bossa nova, éramos bem informados e fazíamos música pra gente mesmo. Não íamos tocar na Rádio Nacional, onde tinha o Francisco Alves, a Ângela Maria. O nosso negócio era mais intelectual, era pra Ipanema”. O cara é um babaca! Porque todos eles eram cópias do João Gilberto, que veio lá de Juazeiro da Bahia, nunca foi intelectual e não morava em Ipanema.

Alternativizando

Essa é a resenha do Claro q é Rock de São Paulo, que saiu na Bizz da Maria Rita. O pé, no final, não entrou – era pra ser uma ponte entre o meu texto e o do Matias Maxx, que resenhou a edição do Rio.


Foto: maria clara diniz

“É preciso um tumulto adolescente para me tirar da cama”, disse o senhor de 47 anos e quase dois metros de altura ao microfone. À sua frente, milhares de pós-adolescentes extasiados moviam-se em convulsão, numa inconsciente tentativa de ter feito valer a viagem do sujeito ao Brasil, entre a diversão assumida e a eterna gratidão gráfica de nossas platéias. Em menos de cinco minutos, o quase cinqüentão devolveria a gratidão, ao lado de seus quatro colegas, ao conduzir o mesmo público turbulento a um transe coletivo histórico, em que a microfonia, ondas sonoras aleatórias, o ruído branco e o zunido dos amplificadores ofegantes deixam conceitos arcaicos como melodia, harmonia e ritmo para trás, transformando um festival de rock, mais uma vez, em uma celebração ritual em escala de estádio. Olhos grudados no palco, o público parecia cego pela música – como se o movimento dos integrantes do Sonic Youth não fossem visuais, e sim uma constatação táctil das vibrações sonoras emitidas pela banda.

Thurston Moore repetia o mesmo acorde, subindo, lentamente, seu instrumento à altura do peito. Kim Gordon, tomada pela vibração magnética, enfiava o braço de seu baixo perpendicularmente em relação ao amplificador. O novato Jim O’Rourke erguia sua guitarra feito um theremin portátil, tentando capturar espectros sonoros no ar. Steve Shelley rendia seu kit de tambores à abstração elétrica. Lee Ranaldo girava seu instrumento no chão, como a colher de um enorme caldeirão sonoro. Depois de transformar “Teenage Riot” em uma elegia elétrica impressionista, o Sonic Youth atingiu o ápice do festival Claro Que É Rock (e, talvez, da temporada de shows gringos no Brasil em 2005) com uma clássica entrega de vanguarda instintiva para as massas – um rótulo que poderia perpassar não só as bandas daquele sábado, como as responsáveis pelas melhores apresentações ao vivo no país neste ano. Sem canções, sem refrões, sem solos ou citações, resumiram a noite e a geração reunida na Chácara do Jóquei, no dia 26 de novembro, em São Paulo. Todos os epítetos agregados ao agora quinteto nova-iorquino (de “art rock” a “punk”, passando por “college rock”, “guitar”, “rock alternativo” e até o próprio nome do grupo) poderiam ser associados, de alguma forma, ao elenco do festival e à grande maioria do público presente na noite. Modernos, skatistas, dândis, universitários, góticos, nerds, eletrônicos, indies, hippies, pseudo-intelectuais, manos, estudantes de comunicação, clubbers, pessoais normais, pós-punks e pós-Strokes – gente normalmente execrada pelo roqueiro clássico como parte do “sistema” se reunia no mesmo lugar para celebrar apenas aquilo que o Sonic Youth sublinhou por pouco mais de dez minutos que ressoam até agora como umas quatro horas mentais. O barulho.

Era o barulho que unia o rock de vanguarda daquela noite. O soco cabeça de Mike Patton, os tambores em câmera lenta da Nação Zumbi, o technopop bad boy de Trent Reznor, o preparo físico de Iggy Pop, os uníssonos no Flaming Lips – as atrações primavam pelo ruído como vínculo primitivo com a platéia, que devolvia a saudação barulhenta com o mesmo entusiasmo, só que sem amplificação elétrica. O barulho equilibrava-se entre distorções esgoeladas projetadas por caixas de som gigantescas e urros de multidão saídos de pulmões de tamanho médio.

Porque, de resto, os pontos de conexão eram mínimos. De um lado, tínhamos o Fantômas de Patton com o Buzz Osbourne (do Melvins) na guitarra e o Terry Bozzio (que tocou com o Zappa) na bateria, quebrando a cara de quem esperava algum vínculo com o universo pop, enquanto do outro, os Flaming Lips abusavam da gentebonice num show cheio de bichinhos de pelúcia, serpentinas, cover de “Bohemian Rapsody” em versão videokê (letras no telão), mascotes infláveis da Rihappy nos cantos do palco e excesso de fofura. Trent Reznor lembrava uma versão dark do Moby (ou um Depeche Mode pra meninos? Tá, tá, eu admito que acho a banda chata pacas, mas eles fizeram um bom show, pra quem gosta), enquanto Iggy Pop fazia adrenalina e nitroglicerina parecerem uma mesma substância química, incitando o caos, a desordem e a invasão de palco – desafiando o público ao não tocar nenhuma música do disco Raw Power.

E pensar que isso está sendo consumido em larga escala não deixa de causar estranheza. Incontáveis as vezes um Funhouse dos Stooges numa pasta de arquivos de MP3 compartilhados não é o suficiente para você ter certeza sobre o caráter musical de uma pessoa desconhecida do outro lado da internet. Uma estampa de camiseta com a capa do Goo era o suficiente para ter certeza que ela não era uma idiota. Projetos pós-Faith No More do Mike Patton sendo citados em papos no meio de uma festa qualquer só para se ter certeza de que não estava pisando em território arenoso. Isso sem contar quando o Flaming Lips apareceu tocando “She Don’t Use Jelly” num episódio do Barrados no Baile.

Tudo isso era muito interno, específico, num nível quase maçônico. Jogávamos pôquer com óculos de raio X, trocando piscadelas quando tocava R.E.M. ou Smashing Pumpkins na rádio. Neguinho tirava onda por ter vinil do Daydream Nation. Em Brasília, só chegavam TRÊS Melody Maker, na banca do aeroporto (na época, sem carro, era lonjaço), que sumiam em questão de horas. Programas de rádio eram contrabandeados em fitas cassete por terem mostrado, pela primeira vez, Melvins ou Minutemen no Brasil. Só que em algum momento entre a ascensão das siglas WWW e MP3 (que foi paralelo a outro período específico – o da falsa ilusão que um real valia o mesmo que um dólar), o que era um segredo tornou-se público. E milhões de pessoas passaram a baixar, ouvir e ter discos que só tinham ouvido falar, lido ou ouvido trechos em situações adversas.

O que era culto, tornou-se febre. O Nirvana era só o estopim de um fenômeno simples – era hora de consumir todo o mercado que vinha se criando nos bastidores do pop oficial (algo semelhante aconteceu na mesma época com o country e com o hip hop nos EUA – por aqui, foi a vez do sertanejo e do pagode, seguindo o mesmo flow). E quando alguns dos principais bastiões desta geração se encontram num megaevento destas proporções no Brasil, há um lado advogado do diabo em que a consciência fica se beliscando pra ter certeza que aquilo está mesmo acontecendo. Mais do que as noites indie do Tim Festival ou os shows gringos na choperia do Sesc Pompéia, o festival reunia um elenco que era, cinco anos atrás, composto pelas oito bandas que a gente reconhecia na programação de quinhentos shows dos Reading da vida.

Até o Good Charlotte está inserido neste contexto. Mesmo que a faixa etária, a histeria adolescente das meninas e o compromisso de seu público com a banda (que, uniformizada com camisetas do grupo, simplesmente foi embora depois que o show acabou) dêem a impressão que eles não fazem parte do caldo, a camiseta do Misfits e o som sub-Green Day prova que estamos ainda no mesmo universo. “Hold On” é Alanis pra meninos, então tá tudo em casa (não adianta fazer essa cara, eu sei que você gosta de Alanis!).

Afinal de contas, fora roupas e trejeitos, são todos iguais. Todo mundo encontrou outros parecidos, especialmente aqueles de outros estados – broders de listas de discussão, blogueiros, friends do Orkut. Vista-se de preto ou de camisa social, de meia arrastão ou bermudão, maquiagem pesada ou cabelo colorido, o fato é que esse é um dos principais públicos de rock atualmente. Rotule-os como adultescentes, screenagers, indies, jovens adultos ou como outra tribo instantânea, mas é inevitável levar a geração 90 em conta – aquela que se lembra quando ouviu o Nevermind pela primeira vez e quando o Forastieri disse que a salvação do Brasil era uma bala no meio da cabeça da Regina Casé, depois de assisti-la de cocar no primeiro VMA. Claro que é rock – mas rock alternativo, não custa sublinhar. E já se vão mais de dez anos.

***

Até que, no dia seguinte, largado na cama, o telefone toca. É o Matias:
– Fala!, berra meu interlocutor xará.
– Falaê, tranq? Indo pra Cidade do Rock?
– Tou indo pra lá agora, esperando o carro passar aqui. E aí, como foi?
– Foi do caralho, Sonic Youth na veia, mas até aí, eu sou fã. Acho que tu não vai curtir.
– Hehehehe. Mas aí, como tu vai fazer com a matéria?
– Pensei em dar uma teorizada básica sobre rock alternativo e dar uma geral nos shows. Não vai dar pra falar de cada um dos shows, música por música. Um monte de site e de jornal já vai ter esmiuçado tudo até a Bizz chegar na banca. Daí a teoria.
– Podecrer, tava pensando no que eu ia fazer memo…
– Deixa pra pensar na hora. Eu só soube que ia escrever sobre isso quando tava chegando na garagem do meu prédio.
– Boa, vou ver qualé.
– Vai lá, então, moleque. Abraço e bons shows.
– Valeu!

Bob Dylan e a pirataria

Já que a Bizz com o U2 na capa saiu da banca, acho que dá pra colocar a materinha sobre as basement tapes do Dylan que eu fiz pra eles. Sem cortes, sem edição, versão crua memo:

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Bob Dylan clandestino

A incrível história do “álbum perdido” de Dylan, as lendas em torno dele e como The Great White Wonder inventou o mercado de discos piratas

“Consideramos o lançamento deste disco um abuso da integridade de um grande artista. Ao publicar material sem o conhecimento ou a aprovação de Bob Dylan ou da Columbia Records, os vendedores deste disco estão privando grosseiramente um grande artista da oportunidade de aperfeiçoar sua performance até onde ele crê em sua integridade e validade. Eles difamam o artista e fraudam seus admiradores ao mesmo tempo. Por estas razões, a Columbia, em conjunto com os advogados de Bob Dylan, seguirá todos os procedimentos legais para interromper a distribuição e a venda deste álbum.”

Tarde demais. A nota divulgada pela gravadora de Dylan em setembro de 1969 sobre a existência de um disco chamado The Great White Wonder veio registrar, nos autos da própria indústria fonográfica, a existência de um registro sonoro inédito que começava a ganhar dimensões improváveis para o que deveria ser uma mera produção caseira. Vendido na casa dos milhares, o vinil duplo trazia dois momentos distintos de Dylan (doze canções gravadas em um hotel em 1961 e outras nove faixas de baixa qualidade acompanhado da mesma banda com quem excursionava, em 1967) e surgia imponente como aquilo que o editor da Rolling Stone, Jann Wenner, chamara de “o disco perdido de Bob Dylan”, na capa da edição de 22 de junho de 1968. Na matéria, eram descritas treze canções que circulavam por meios alternativos, que comporiam um próximo álbum do contratado da Columbia Records. “O conceito de um disco coeso já está presente”, escreveu, antes de clamar: “A fita do porão de Dylan precisa ser lançada.”

“Havia uma enorme demanda por Dylan e ele não lançava nada”, me explica Greil Marcus, uma das principais autoridades sobre o músico norte-americano. “Naquela época, um artista de seu porte não lançar nada por seis meses era algo improvável – que dizer do período de um ano e meio entre Blonde on Blonde (1966) and John Wesley Harding (1968). Neste sentido, os piratas preencheram a lacuna. Como aconteceu, haviam tantos lançamentos – sobras de estúdio, shows, músicas que nunca foram lançadas etc. – que constituem toda uma carreira à sombra – que Robert Polio recentemente construiu no livro Tin House”.

Em menos de um ano, The Great White Wonder veio à tona; as primeiras cópias eram vendidas em Los Angeles e logo se replicaram pelo mundo. Mais do que compartilhar com o grande público gravações que já eram conhecidas dentro da metiê fonográfico, o LP é o primeiro passo em uma história que todo fã de música pop adora: o disco pirata. Uma história em que o próprio Bob Dylan é um de seus principais protagonistas.

Like a Rolling Stone
Volte no tempo cinco anos e encontre Bob Dylan no auge de sua carreira. Mais do que se enamorar pelo rock’n’roll, o antigo garoto-prodígio da cena folk e a então voz de sua geração viu na combinação barulhenta de country e rhythm’n’blues em instrumentos elétricos uma capacidade de comunicação mais instantânea e mais ampla do que o beco sem saída das ladainhas ao violão que andava metido. O rock se tornava a nova música popular, o novo som das ruas. Ele reconhecia a reverência que a geração da Invasão Britânica fazia aos grandes nomes do rádio norte-americano dos anos 50 – não à toa, batizou um disco de Bringing it All Back Home (“Trazendo Tudo de Volta pra Casa”).

“Os Beatles estavam fazendo o que mais ninguém fazia”, disse Dylan em 1971 a um de seus biógrafos, Anthony Scaduto. “Os acordes eram ultrajantes e suas harmonias vocais validavam tudo. Você só pode fazer isso com outros músicos. Foi quando comecei a pensar em trabalhar com outras pessoas. Todo mundo pensava que os Beatles eram pra adolescentes, que logo iam passar. Pra mim, eles tinham chegado pra ficar. Sabia que eles apontavam o rumo que a música devia seguir.”

Desde o primeiro momento em que optou pelo rock, não havia meio-termo – tanto que sua “conversão” elétrica foi em alto e bom som no Newport Folk Festival. Dylan subiu no palco no dia 24 de junho de 1964 ao lado do tecladista Al Kooper e da Blues Band de Paul Butterfield, os mesmos músicos com quem, havia pouco mais de uma semana, gravara o hino “Like a Rolling Stone”. O single chegou às paradas no mesmo dia em que Dylan encerraria o evento. Ele foi chamado ao palco com entusiasmo pelo cantor Pete Seeger, um dos organizadores, o mesmo que dali a pouco tentaria cortar o cabo de eletricidade com um machado quando a banda de Dylan começou a tocar “Maggie’s Farm”.

Era guerra. Chamou os canadenses dos Hawks para ser sua banda e juntos cruzaram 1965 e 1966 na famosa turnê. Na primeira metade do show, Dylan tocava sozinho seu violão; na segunda parte, vinha com a banda e presenteava o público com uma descarga musical bruta e agressiva. A resposta vinha em forma de vaias.

O choque foi intenso para a banda, formada pelo guitarrista Robbie Robertson, o pianista Richard Manuel, o baixista Rick Danko, o organista Garth Hudson e o baterista Levon Helm – tanto que este pediu as contas em novembro de 65, pois não suportava mais ser vaiado. Acostumada a tocar em pequenos pardieiros, a banda era atirada às mais reputadas salas de espetáculo do mundo, do Hollywood Bowl ao Royal Albert Hall, secundando um dos principais artistas jovens da época, e ainda por cima para ser agredida pela platéia. Que, por sua vez, pagava para vaiar.

Se a banda estava chocada, o mesmo não parecia acontecer com Dylan. Desafiava o público, os fãs, os jornalistas e quem mais se colocasse entre ele sua nova música com um humor nonsense e aparente desprezo por todos. Seus discos haviam encontrado, no público de rock que aos poucos amadurecia, uma audiência maior que o conservadorismo folk. Mas aquilo parecia ter ampliado ainda mais seu papel de “voz de uma geração”. A agressividade musical parecia atrair outro tipo de agressividade. Violência gera violência. As vaias eram substituídas por xingamentos e pesadas trocas de acusação entre o cantor e a platéia, numa onda cada vez mais crescente em que a própria vida de Dylan parecia correr risco. “Olha o que eles fizeram com o Kennedy em Dallas!”, assustou-se o cantor folk Phil Ochs ao assistir ao confronto no estádio de Forest Hills, em Nova York.

Essa história é registrada magistralmente em dois dos mais importantes documentários da história do rock, Don’t Look Back do diretor D.A. Pennebaker, que acompanha o braço inglês da turnê de 1965 e foi crucial para difundir o novo Dylan para todo um planeta ainda não unificado pela TV via satélite, quando foi lançado em 1967; e No Direction Home, de Martin Scorsese, lançado no ano passado.

Woodstock
Precisando descansar, Dylan comprou uma casa de campo em Woodstock, assim como seu empresário Albert Grossman, pouco antes de reiniciar a turnê americana, em 1966. Impressionados com a tranqüilidade pastoral da região, próxima de Nova York, os quatro canadenses dos Hawks (só Levon era norte-americano) mudaram-se para uma enorme casa rosa em West Saugerties, próximo à casa de Bob. Montaram seus instrumentos no apertado mas confortável porão de uma horrorosa casa rosa (a “Big Pink”), onde começaram a ensaiar com freqüência, muitas vezes acompanhados por Dylan.

Até que, no dia 30 de julho de 1966, as rádios dos Estados Unidos passaram a noticiar que Bob havia sofrido um acidente de motocicleta.

Ninguém sabe ao certo o que aconteceu e a gravidade do estado de Dylan após os freios de sua Tryumph 500 terem parado de funcionar perto de sua casa, quando foi acompanhar a mulher, Sara Lownds, que saía de carro, em uma volta pela região, no dia 29 de julho. Na época, falavam que ele estava entre a vida e a morte, que o acidente estava apenas encobrindo o fato de ter enlouquecido, que a CIA havia sabotado sua moto. Depois do acidente, Dylan se isolou: não recebia visitas, falava com os amigos por meio de um interfone e não saía mais de seu quarto.

Quando começou a fazê-lo, encontrou sua banda em outro plano. Sem bateria, tocavam mais devagar e mais baixo, sem perder a pegada rock. A atmosfera do porão dava uma estranha vida ao local e som ecoava por mais tempo, como uma velha transmissão de radio. O lugar combinava com o som que lembrava em sua reclusão, som de infância, entre o blues e a música folk, de artistas anônimos e trovadores atordoados. À medida em que se recuperava, voltou a tocar com a banda, que não tinha mais nome. Eram apenas “The Band”.

Puseram o gravador para funcionar e em abril de 1967 começaram os históricos registros. Poucos instrumentos, tocados informalmente, entre tentativas e risadas, eram o centro dessa viagem ao passado em que nem Dylan nem a Band, podiam saber, conjurou espíritos de diferentes eras do som gravado nos EUA. Os cinco se tornavam um conjunto vocal, a princípio parodiando cantores antigos com vozes cômicas que, pouco a pouco, ganhavam um novo significado. Compunham músicas com se estivessem apenas tentando lembrar delas, numa jam session espiritual de retorno à infância de suas musicalidades. Ao comparar o som do porão ao de um laboratório, o Greil Marcus ouviu algo bem diferente de Robbie Robertson: “Não”, disse o guitarrista no livro Invisible Republic. “Aquilo era uma conspiração. Era como as fitas de Watergate. Pra muitas coisas, Bob dizia ‘devíamos destruir isso!’.”

Quatorze dessas faixas foram transformadas em discos de acetato por Albert Grossman. Dylan não tinha a intenção de lançar aquelas gravações, mas aproveitou para oferece-las a outros intérpretes. “Quinn the Eskimo” foi para Manfred Mann; “You Ain’t Goin’ Nowhere” para os Byrds; “This Wheel’s on Fire” caiu com Julie Driscoll, Brian Auger & the Trinity; “Too Much of Nothing” ficou com Peter, Paul & Mary. Cada artista que registrava algo daquele misterioso material dava dimensões ainda maiores às versões originais, como se elas encobrissem algum segredo.

O segredo, na verdade, eram as próprias fitas – já então apelidadas com seu nome clássico de “basement tapes” (“fitas do porão”). Dylan, aos poucos, voltava à carreira via country (o disco John Wesley Harding, gravado em Nashville, e na aparição no show em tributo a Woody Guthrie no Carniege Hall, em janeiro de 1968). Ao mesmo tempo, cópias daquele acetato circulavam entre artistas, jornalistas, fãs e empresários, revelando a música que Bob Dylan vinha fazendo quando virou as costas para o Verão do Amor. Reuniu-se com os amigos e voltou para o passado, num clima de convivência mais honesto e intenso que o sexo desesperado do amor livre, a piração ablué das drogas psicodélicas ou o ruído estridente do rock’n’roll. Eram apenas amigos fazendo música. Folk, direitos civis, psicodelia – estava cansado de pegar carona na onda dos outros.

Com as “fitas do porão”, era a vez dos outros seguirem sua onda. E foi assim que os Rolling Stones saíram do abismo paz e amor onde nunca deveriam ter ido, exilados uma chácara no interior de São Paulo, no Brasil, para compor seu disco mais “raiz”, Beggar’s Banquet, ouvindo as basement tapes sem parar. Nos Beatles, foi George Harrison quem deu a dica de Dylan e fez Paul McCartney bolar o conceito do disco Get Back, em que o grupo voltaria a descobrir o prazer de estar junto tocando músicas velhas – um projeto que deu errado, acelerou o fim da banda, e culminou nos disco e filme de mesmo nome, Let it Be. A música country era reavaliada e tinha sua importância ressarcida. Woodstock tornou-se o palco para o megafestival e sinônimo de todo aquele sentimento. Uma saída melancólica mas digna para a autodestrutiva psicodelia, já em rota de colisão, as basement tapes foram uma espécie de amuleto para a passagem dos anos 60 para os 70.

The Basement Tapes
Daí que em 1969 veio The Great White Wonder, dali a pouco Troubled Troubador, Waters of Oblivion e vários outros discos piratas, que ampliavam ainda mais o número de músicas do porão – das 14 originais foram para 23 em 1975, o ano em que a Columbia oficializar o disco, com todas as faixas (24! Uma única faixa desconhecida dos fãs, “Goin’ to Acapulco”, indicava que ainda havia mais a se descobrir) num mesmo volume. Mas a gravadora não gostou do som das fitas e fez a Band regravar algumas partes, descaracterizando-as. Oficializado, The Basement Tapes chegou aos dez discos mais vendidos na semana de seu lançamento: “Eu pensava que todo mundo já tivesse essas músicas!”, disse Dylan, surpreso.

Contudo, duas novas coletâneas piratas Blind Boy Grundy & the Hawks volumes 1 e 2 (o título vem dos nomes que Dylan e a Band usavam antes de serem conhecidos), só com faixas inéditas foram lançadas logo após o disco da Columbia, ampliando ainda as basement tapes. No livro Bootleg: The Secret History of Rock and Roll, o escritor Clinton Heylin localiza a origem deste segundo lote quando um amigo de Robbie Robertson deu uma série de fitas a uma loja no noroeste americano. Um terceiro lote de fitas seria encontrado e todas as gravações conhecidas das basement tapes seriam compiladas numa caixa de cinco CDs de 1990 – que melhoraram edição após edição até chegar ao box A Tree With Roots, de 2001.

A quantidade de artigos da pirataria Dylan o torna o artista mais lançado extra-oficialmente do mundo – até mais que os Beatles, pois eles terminaram em 1970. Só a existência de Jewels and Binoculars, uma única caixa com 26 CDs dedicadas a seus shows em um ano (1966, da gravadora Vigotone) já deveria servir como prova disso. Ele também contribui, produzindo mais do que pode lançar, trocando versões matadoras por faixas fracas em cima da hora, refazendo discos sem pestanejar. Tanto que começou a desovar este material em coletâneas oficias, como na Biography, em que comenta sobre a pirataria no encarte: “Eles tem coisas que se faz em uma cabine telefônica. Quando não tem ninguém por perto. Você num motel, sozinho, não conhece ninguém e… É como se o telefone estivesse grampeado… Aí aparece num disco pirata. Com uma foto de você que foi tirada debaixo da sua cama e com um título meio strip-tease, custando 30 contos. E depois você pergunta porque tantos artistas são paranóicos.”

Dylan entrou pra valer no jogo quando lançou sua série pirata, em 1991. A princípio, uma caixa com três CDs cheios de relíquias para maníacos e faixas incríveis para o público em geral, as Bootleg Series já estão em seu sétimo volume (a trilha sonora de No Direction Home) e nem sinal das basement tapes oficializadas mesmo – na íntegra, sem retoques, sem remasterização moderna. Como o documentário de Scorsese termina no misterioso acidente de moto, já especula-se sobre um segundo filme, que nos levaria às profundezas do mítico porão.

“Dylan, mais do que muitas figuras públicas viveu numa nuvem de desinformação e mito, boa parte deliberadamente criada ou encorajada por ele para aumentar sua própria imagem”, me disse Howard Sounes, outro biógrafo do músico. Marcus conclui: “Eu não tenho a menor idéia do que Dylan acha disso tudo. Contudo, não fui o único a notar que seu disco de 1970, Self Portrait (Auto-retrato), era um apanhado de faixas ao vivo, sobras, versões de segunda categoria e peças inacabadas, muito parecido com o disco que o precedeu, The Great White Wonder”, conclui Marcus.

Tem a manha

Esse texto aí embaixo foi parar clipado numa matéria da Bravo! online (vai entender as corporações brasileiras), mas é original da Bizz 193, aquela, dos Stones

***

“Se vê que vai cair, deita de vez, ó nego”, canta manhoso a voz grave de Junio Barreto na música quase homônima de seu homônimo disco de estréia, lançado por conta própria e disponibilizado em lojas pela distribuidora Tratore. Lentamente, sem se aperrear, Junio vai deitando-se. O olhar sonado e o sorriso horizontal tornam-se cada vez mais constantes, à medida em que relaxa para descansar ao ver-se caindo nas graças de um time nada desprezível de cantoras brasileiras.

Maria Rita, Céu, Mônica Feijó, a ex-Rouge Luciana Andrade, Gal Costa, Ana Carolina, Daniela Mercury e Maria Bethânia são algumas que já deixaram-se seduzir pelo canto macio e seu imaginário de sílabas incompreensíveis que se desdobram entre expressões nordestinas, saudações nagô, termos caipiras, inflexões verbais esquecidas. “Oi niná chegou pra tu simbora, vadiá/ Roça de caipora samba manhãzinha”, “Porque ter muito é ter não/ Por não ter jeito de vez/ Do riso, sono, sossego”. As letras parecem não fazer sentido, pois habitam um português puramente oral, sem vínculos com o texto impresso. Até o utópico banquete onírico de “Amigos Bons” (“Ontem acordei de susto com o ronco da minha barriga com fome/ Enquanto sonhava que estava jantando com alguns amigos bons”) parece surreal em seus nomes improváveis: “Salada e camurim/ Cajuada aromática/ Jenipapada e alguns amigos bons”. Mas geram imagens perfeitas: “Dengo de mão”, “separa o tudo”, “na casa mora a rua toda e ainda cabe o dia”.

Sozinho, Junio soaria como um xamã de calçada, invocando palavras e rimas com a inexatidão ilógica dos moradores de rua. Mas ao seu redor, surge uma banda de múltiplos maestros, gente que compõe o grosso dos músicos que sustentam a ainda resistente estrutura do famigerado rótulo MPB. Nomes como a percussionista Simone Soul (Zeca Baleiro), o tecladista Dudu Tsuda (Jumbo Elektro), o guitarrista Gustavo Ruiz (Donazica) e o baixista Alfredo Bello (o DJ Tudo) transformam a elegia pé-no-chão de Junio em um samba soul pós-bossa nova, com toques precisos de jazz e chorinho, com muita elegância e groove. Garanta um para a sua namorada antes que ela venha pedir cada um dos discos de cantora com as composições deste pernambucano careca. Não tem erro.

Aquaplay

Resenhinha pro livro The Future of Music que saiu na Bizz 195, a com os Strokes na capa e, pra deixar registrado, uma senhora matéria do Lucio.

“A água tem um papel essencial em nossas vidas – nada acontece sem água. Centenas de milhares de pessoas ao redor do mundo trabalham no mercado de prover água para outras pessoas, bilhões são gastos para garantir o suprimento regular de água e exércitos de pesquisadores e trabalhadores lidam com projetos relacionados à água. Ao lado do ar, a água é absolutamente essencial à vida. Não pagamos pelo ar – ainda – mas pagamos por água e, por conseqüência, algumas das companhias de lidam com água estão entre as empresas mais ricas do planeta”.

E o que o futuro da música tem a ver com a água? Na verdade, a água é apenas uma metáfora que David Kusek e Gerd Leonhard usam para explicar como a música será consumida no futuro. “The Future of Music” é, sim, um exercício de futurologia, mas baseado em números e situações atuais de empresas e pessoas que já encontraram soluções para a chama “crise na indústria na música”. Que, salientam os autores, não existe. A crise é da indústria do disco: “Muitos de nós estamos acostumados a pensar que toda a indústria é fundada em uma fórmula simples: volume de venda de discos = valor da indústria”, escrevem, “isso é um mito porque, na verdade, a indústria do disco é só uma fatia da indústria de música como um todo – e muitas das outras fatias são sequer conhecidas pelo consumidor médio de música”.

Os autores traçam um panorama sobre a indústria da gravação de discos e sobre a digitalização da música que, a partir dos anos 80, liberou-a do formato disco para qualquer outro suporte de natureza digital. Ao cogitar que os consumidores pagassem mais caro por um produto mais barato (o CD) e forçando o público a comprar novamente os mesmos discos, a indústria fonográfica criou um formato fácil de gravar, copiar, distribuir, dar. Achou que estava vacinando-se, quando provava um veneno cujo gosto está sendo sentido hoje em dia.

Mas “música de graça” não é equivalente à artistas sem dinheiro, como as grandes gravadoras fazem supor. Mesmo porque “música de graça” nunca é de propriamente gratuita – ninguém baixa MP3s e queima CD-Rs sem ter uma boa conexão online ou um computador decente, que foram pagos por alguém.

Voltamos então ao paralelo com a água, que está sempre ao nosso redor e, aparentemente, é de graça. Mas quando lavamos a mão no restaurante, abrimos a torneira num parque público ou tomamos banho num hotel estamos, mesmo que indiretamente, pagando a conta. E a troca de parâmetro básico – música como um serviço, não como um produto – faz com que o pagamento pela música aconteça mais pela comodidade do acesso do que pelo valor agregado ao disco propriamente dito. Ou alguém consegue explicar outro motivo para o fato de um trecho tocado em MIDI de uma determinada música (o famigerado ringtone) custar mais caro que a música inteira, na versão original, nas lojas de MP3s online?

Lennonologia

Em clima “Imejinóudepipôl!”, desenterrei uma semicapa (a outra metade era o Iron Maiden) sobre os 20 anos da morte do John, que também conta com um “e se…” na linha do que o Joca fez pra Folha terça. Como o texto é pr[e-edição, tem muita coisa que não saiu na revista em papel, aí embaixo.

Bem-vindo ao novo Trabalho Sujo muito louco de verão.

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Karma imediato
Como ir em frente quando não se sabe que caminho se está seguindo? Como amar quando nunca se teve amor? As dúvidas existenciais que motivaram a inconseqüentemente intensa e bela carreira de John Lennon pareciam resolver-se quando, há vinte anos, cinco tiros o separaram deste futuro que vivemos hoje

“Você não sabe o que tem até perder” (What You Got)

“Você sabe o que acabou de fazer?” – o porteiro Jay Hastings não conseguia traduzir em palavras o sentimento que passava por sua cabeça. O sujeito estava em frente ao prédio, calmo e paciente, com o livro O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger, às mãos, como se sequer soubesse o que havia acontecido há menos de um minuto, logo em frente. Eram 11 da noite quando Mark David Chapman, 25 anos naquele 8 de dezembro de 1980, virou-se para o atordoado Hastings e, entre um sorriso de alívio e um suspiro de desespero, tranqüilamente confessou: “Eu atirei em John Lennon”.

Lá estava o ex-Beatle atirado no chão, cinco buracos de bala em seu corpo, drenando sangue e outros fluidos orgânicos enquanto gemia seus últimos suspiros. “Fui baleado”, disse pouco antes de perder a consciência, entre as fitas de sua última gravação. Hastings não conseguia acreditar na cena que assistia, Lennon vomitando sangue em sua frente, dissipando todo o glamour popstar à medida que a morte chegava da forma mais rasteira e fugaz possível. Lembrava do Beatle mais esperto da invasão britânica, do pacifista polêmico do começo da década anterior, do Lennon caseiro que cuidava do filho e há dois anos o cumprimentava pelo nome: “Bon soir, Jay”. Tirou o casaco e cobriu o artista baleado. “Ok, John, vai dar tudo certo”, balbuciava nervoso ao ver o foco de seus olhos sumindo entre lentas piscadas de pálpebras. Tirou a gravata, para usar como um torniquete, mas não sabia o que fazer com ela, saindo logo em seguida à caça do agressor que apenas esperava parado na mesma rua 22 Oeste em que o crime havia acontecido. Dois carros da polícia freiaram em frente ao Dakota, onde Lennon e Yoko moravam desde o nascimento de seu único filho, Sean, e dois policiais saíram encurralando Hastings. “Ele não”, gritou um porteiro. “Foi ele!”, Jay apontou para o autor dos tiros.

Chapman havia conversado com Lennon antes de decidir assassiná-lo naquele mesmo dia. Cinco horas antes, havia cumprimentado o ex-Beatle, lhe apresentando uma cópia do recém-lançado Double Fantasy para ser autografada. “John Lennon, 1980”, escreveu o músico inglês antes de entrar na limusine branca que o levaria para o estúdio, onde gravava Walking on Thin Ice, seu próximo single. Mark esperou John voltar para casa, quando, ao sair da limusine, o abordou: “Mr. Lennon?”. John virou-se para atendê-lo e foi seguido por uma seqüência de cinco tiros disparados pelo 38 de Chapman. Mark virou-se e tomou distância, com a sensação do dever cumprido. Poucas horas mais tarde, John Lennon era declarado morto, aos 40 anos de idade.

“Na verdade eu não queria o autógrafo, eu queria a vida dele. E eu acabei ficando com os dois”, diz hoje Chapman, 45 anos, 20 deles de cadeia. O assassino de John Lennon tentou pedir a redução de sua pena por bom comportamento, no mês de outubro (quando o ex-Beatle completaria 60 anos), mas o pedido foi negado por Yoko Ono – embora muitos, Chapman inclusive, apostassem na boa vontade da japonesa mais famosa do mundo. “Eu acho que ele provavelmente gostaria de me ver livre”, disse o assassino. O advogado de Yoko, Robert Gangi, respondeu na lata: “John adoraria estar aqui para falar por si mesmo”.

Certamente, afinal Lennon sempre foi conhecido por sua língua afiada. Desde que apareceu com os Beatles era o responsável pelas frases mais sarcásticas, pelas letras mais ácidas, pelas farpas disfarçadas de elogios, pelos trocadilhos surrealistas, pelas canções mais diretas dos quatro de Liverpool. Em pouco tempo, era um dos roqueiros mais respeitados de sua geração por um motivo simples: não engolia desaforo e cuspia contra quem quer que pudesse vir em sua direção. O ataque verbal era a marca registrada de John, mas, no fundo ele sabia, era só uma forma de defesa.

Porque o mundo, apesar de suas sempre dúbias voltas, não conspirava a favor de John Wiston Lennon, que nasceu sob um bombardeio alemão sobre Liverpool no dia 9 de outubro de 1940. Filho de pais boêmios e arruaceiros (Julia vivia na noite e Alfred – ou Fred – era um marinheiro que tinha famílias de portos em portos), o pequeno John cresceu sob a conduta da irmã de sua mãe, Mary Elizabeth Smith – a tia Mimi – e seu marido George, na pequena e escura casa no número 251 da Menlove Avenue. Suas primeiras lembranças da infância recordam do pai voltando para Liverpool e querendo-o levar para morar na Nova Zelândia, quando tinha apenas 8 anos. A princípio, John aceitara, mas logo ele sentiu saudades e antes de embarcar no navio voltou para os braços da mãe, ainda horrorizada com a decisão do filho, chorando.

A ausência de Julia na vida do jovem Lennon causou-lhe estragos cujas marcas o perseguiram pelo resto da vida. Por mais que seus tios se dedicassem, ele não tinha o conforto dos pais e isso lhe rendeu conflitos sociais que o tornaram amargo e isolado. A morte da mãe (atropelada por um policial bêbado quando John tinha 18 anos, na época em que os dois voltavam a se falar com freqüência) e a volta do pai (querendo aproveitar-se da fama do filho no auge da Beatlemania) contribuíram para sua degradação individual, sendo cada vez mais corroído por sentimentos egoístas e antissociais. Dois gêneros modernos o viriam salvar do pesadelo/prisão que sua vida aos poucos se desenhava: a literatura (representada por Lewis Carroll) e o rock’n’roll (encarnado em Elvis Presley).

O primeiro surgiu na biblioteca da Dovedale Primary School, quando Lennon descobriu em um de seus livros de inglês o poema Jabberwocky, do livro Alice no País do Espelho. Tinha menos de dez anos e ficou fascinado com a forma que Lewis Carroll contorcia as palavras, dando-lhes duplos ou triplos sentidos apenas ao trocar letras e combinar conjunções. Um mundo mágico descortinava-se em sua frente e bastava apenas brincar com o idioma para distorcer a realidade ao seu prazer.

O segundo veio com a gradual descoberta da música para dançar: primeiro com a febre do skiffle que tomou conta do norte da Inglaterra em 1956; depois com o filme Blackboard Jungle, que lançou a canção Rock Around the Clock, e, finalmente, a rendição definitiva de Heartbreak Hotel, daquele caminhoneiro que tornara-se sensação nos Estados Unidos. Como nos EUA, Elvis Presley atacou a Grã-Bretanha como um furacão, convertendo milhares de moleques sem rumo na vida na nova religião do rock’n’roll.

John comprou um violão (por 17 libras) e começou a deixar o topete no cabelo. Comprou uma jaqueta de couro e quase todo dia à noite, sintonizava a Rádio Luxemburgo, para ver se conseguia aprender – sem professor – aquelas músicas geniais que não paravam de vir da América. De lá vinham navios cargueiros cheios de revendedores de discos, que contrabandeavam os sucessos das rádios americanas para os disc-jóqueis ingleses, criando um verdadeiro mercado negro de discos americanos. Montou um conjunto com seus amigos Pete Shotton, Nigel Whalley e Ivan Vaughan, chamado The Quarrymen (em homenagem à escola que estudavam, a Quarry Bank School. Foi Vaughan quem, em um dos primeiros shows do conjunto (uma quermesse na igreja de St. Paul, no subúrbio de Woolton, entre a apresentação dos cachorros da força policial da cidade e um concurso de tortas), apresentou o jovem Lennon a um garoto mais novo chamado James Paul McCartney. Ivan convenceu Lennon, que estava bêbado, a ir conversar com Paul quando soube que este sabia tocar 20 Flight Rock, de Eddie Cochran. John gostou do que viu (embora esnobou-o para Ivan), mas dias após aquele lendário 6 de junho de 1957 pediu para Pete perguntar se Paul queria entrar no grupo. Ele aceitou.

Com o rock’n’roll, Lennon parecia conseguir canalizar toda sua angústia adolescente em algo que, ao menos para ele, parecia produtivo. Passou a dedicar-se ao grupo que, com a adição do guitarrista George Harrison, o baixista Stuart Sutcliffe e o baterista Pete Best, passou de Quarrymen a Long John & the Silver Beatles a simplesmente Silver Beatles. Originalmente o grupo iria se chamar Beetles (besouros), como os grilos (os Crickets) de Buddy Holly ou os próprios Beetles que eram a gangue inimiga de Marlon Brandon, no filme O Selvagem. Mas Lennon propôs a troca da segunda vogal repetida por um “a”, dando diversos duplos sentidos, que iam da geração literária Beat à palavra inglesa que designa batida, ritmo. Assim viajaram para Hamburgo, na Alemanha, onde passaram a tocar shows de 10 horas seguidas em que precisavam tocar qualquer tipo de música que lhes fosse pedido. Ao mesmo tempo em que entrosavam-se como músicos, aprendiam várias canções novas por dia e pegavam pique de palco. Era inevitável que se tornassem uma boa banda.

Ao mesmo tempo, curtiam como que às escondidas aquele parque temático para maiores de 18 anos chamado Hamburgo. Entre shows de strip-tease, casas noturnas de quinta categoria, punhados cheios de toda sorte de bolinhas goelas abaixo, brigas de gangue e intelectualismo de cais de porto, os Beatles estavam prestando vestibular para o baixo calão da sociedade alemã que, arrasada no pós-guerra, transformava-se num imenso submundo para sustentar sua auto-estima. Às vésperas dos 20 anos, os Beatles viviam o paraíso de sexo, drogas e rock’n’roll que qualquer adolescente do planeta espera da vida. Lennon encontrava a fantasia perfeita para encarar a insegurança que a vida havia lhe passado.

Quando voltaram a Liverpool (Stuart ficou na Alemanha, com sua namorada, a fotógrafa Astrid Kirchner, e Paul assumiu o baixo da banda), os Beatles eram uma banda em ponto de bala, azeitada para o sucesso. E foi este quem fez o garoto Raymond Jones entrar na loja de discos Northern England Music Store naquele 28 de outubro de 1961. Jones procurava um disco chamado My Bonnie que um grupo da cidade havia gravado na Alemanha com um cantor chamado Tony Sheridan. O dono da loja ficou intrigado e tratou de querer saber um pouco mais sobre o tal grupo. Foi esta curiosidade que levou o jovem Brian Epstein a ir à casa noturna Cavern Club no dia 8 de novembro daquele mesmo ano. Quando assistiu à explosão de energia que os Beatles proporcionavam aos 200 adolescentes que se espremiam no local, não teve dúvidas e começou a gerenciá-los. O primeiro passo foi livra-los das jaquetas de couro e dos topetes (a contragosto de Lennon) e trocar o baterista do grupo (saía o galã juvenil Pete Best – sob protesto das fãs – e entrava o preciso e pacato Ringo Starr). Depois, era só vendê-los do jeito certo e o tino comercial dos Epstein finalmente aflorava em Brian, que transformou o grupo em seu maior bem empresarial. O resto, como dizem, é história.

Com os Beatles, Lennon atravessou os anos 60 galvanizando uma estranha e carismática personalidade. Ao mesmo tempo em que parecia objetivo, franco e direto em suas entrevistas cheias de sarcasmo juvenil, suas músicas pediam socorro e mostravam um artista inseguro e tímido. “Ajude-me se puder, estou me sentindo mal”, cantava com entusiasmo em Help!, “ajude-me a por os pés de volta no chão”. Viver no furacão da Beatlemania já te deixava completamente alheio às noções de realidade, morando em quartos de hotel pelo mundo, entre entrevistas e sessões de fotos. Mas ser um Beatle era mais insuportável. Toda aquela euforia girava em torno de John, Paul, George e Ringo onde quer que eles fossem, não havia descanso para aquilo. E se no começo era uma felicidade púbere de um sonho impossível realizado, dando motivos de sobra para que os quatro se especializassem em ser os Beatles (isto é: gostar de ficar juntos, brincando o tempo todo e cantando canções apaixonantes), aos poucos foi se tornando a única forma de expressar o desespero de estar na locomotiva de um trem desgovernado.

“Eu sou um perdedor e eu não sou o que pareço”, cantava Lennon, que mais sofria, no disco Beatles for Sale, de 1964. “Viver é fácil com os olhos fechados, interpretando mal tudo que se vê”, filosofava Strawberry Fields Forever, em 1967. “Eu não consigo dormir, nem parar meu cérebro, já são duas semanas e eu estou ficando louco”, desesperava-se em I’m So Tired, de 1968. A cada oportunidade Lennon demonstrava o quanto aquela vida lhe desgraçava, queria sair. “Era preciso se humilhar para ser o que os Beatles eram. E é isso o que eu me arrependo, porque eu fiz aquilo”, disse logo após sair do grupo em sua histórica entrevista ao editor da revista Rolling Stone, Jann S. Wenner, em 1971 (que está sendo lançada na íntegra no livro Lennon Remembers), “Eu não percebi aquilo, aconteceu pouco a pouco até que esta completa loucura estava à nossa volta. E você estava fazendo exatamente o que não queria fazer com pessoas que não suportava – as pessoas que você odiava quando tinha dez anos. E é isso que eu estou dizendo neste disco (Plastic Ono Band, seu primeiro disco solo propriamente dito). Eu estou dizendo: ‘Fodam-se todos! Vocês não me pegam de novo!’”.

Desde os Beatles, o desespero pessoal era sanado graças a fugas de cunho espiritual, embora sempre embaladas em formatos diferentes como drogas, religiões, linhas ideológicas, políticas ou individualistas. Foi assim que descobriu acidentalmente a psicodelia Beatle entre recortes de jornal e velhos cartazes. Foi assim que abraçou a meditação transcendental do Maharishi Maheshi Yogi, a arte de vanguarda, o blues primitivo (Lennon estava no Rock’n’Roll Circus, lembram?), o pacifismo ativista, a manipulação da imprensa, a adoração ao rock e ao grande amor de sua vida, Yoko Ono.

Durante toda sua carreira, estava à procura de algo que nunca tivera: amor. Buscava ser amado das formas mais diferentes, cantando sobre o tema com gana e desesperança. Transformou o sentimento numa espécie de verdade absoluta, seguindo a convenção básica do cristianismo e a premissa do profeta João que dizia que “Deus é amor”. Lennon, por sua vez, desacreditava da religião e transformava o amor universal numa filosofia pessoal. “Eu só acredito em mim”, cantava quando começou a se ligar em sua própria ideologia, logo quando os Beatles não existiam mais.

Por sua discografia, cantava o medo de não ser aceito, que o perseguiu por toda vida e só encerrou-se com o nascimento do primeiro filho com Yoko, na mesma semana em que seu visto de permanência nos Estados Unidos era aceito. “Dizem que sou louco por fazer o que faço/ Me aconselham de todo jeito para me salvar da ruína”, cantava ao final de sua vida, quando já sabia o que precisava para ser feliz, “eu fico aqui apenas vendo as coisas acontecerem; gosto de vê-las rodar”. Dedicando-se à vida privada após 1975, Lennon descobriu na própria família tudo que precisava.

Era simples. É simples. O melhor da vida vem em coisas rotineiras, não em milagres ou acontecimentos históricos. Tudo isso é determinado pelo gosto de outras pessoas, por interesses de grupos sociais que querem dizer-se melhor que os outros. Como o melhor rock, Lennon sabia que tudo que é bom não tem frescura. Direto, com franqueza e transparente; sem segundas intenções ou troca de favores. O amor que Lennon passou a viver nos últimos anos de sua vida (deixando os negócios nas mãos de Yoko, que os tocava à base do misticismo e saía-se incrivelmente bem), o tornou completo, fazendo com que descobrisse que tudo que sempre procurara estivesse exatamente dentro de si mesmo.

A forma com que John expunha-se, abrindo sua vida privada e seus conflitos interiores ao olho público fez com que ele revelasse a indecisão e a sensibilidade que habitam a cabeça de qualquer pai de família. A vazão de seus sentimentos em entrevistas e canções criou um novo parâmetro masculino, em oposição ao durão vendido por Hollywood e o machão sensível fechado na tríade Elvis/Brando/Dean. Lennon tornava possível qualquer um extravasar seu lado infantil, senil, púbere e maduro ao mesmo tempo, sem precisar atrelá-los a faixas etárias.

“Nos próximos dias – sem coragem de dizer adeus a John – eu percebi uma das razões que fizeram-me sentir com medo, sozinho e sem acreditar nas notícias que continuavam a passar foi que eu formei minha vida adulta em torno deste cara de uma forma muito séria”. Dez anos depois da tal entrevista, o editor da Rolling Stone Wenner sintetizava os sentimentos de toda uma geração frente à morte de Lennon. Ela que veio nos lembrar de como é fácil se perder o que se tem, quando não se toma cuidado. Até o amor.

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Ninguém me disse que ia ser assim
Imagine se John Lennon não tivesse morrido?

Todo dia, a mesma coisa: Lennon acordava, arrastava-se da cama até a porta de casa, enfiava a mão para fora, catava o jornal e ia para a copa, onde tomava um café e fumava o baseado que havia feito escondido no banheiro na noite anterior. Yoko ainda pegava em seu pé quando o assunto era drogas e o argumento “maconha não é droga” teve que ser substituído por “café e maconha não são drogas”. Ela sabia que John fazia aquele ritual adolescente todas as manhãs, mas fingia dormir para dar ao marido o gosto do prazer proibido, que era cada vez mais lhe negado à medida que ia ficando mais rico.

Goles e tragos após a página de esportes, pegava a seção de entretenimento do jornal e teve mais uma vez a nauseante visão dos três outros Beatles remoendo na carcaça de seu antigo grupo. “Esses porras precisam de mais dinheiro ainda?”, resmungava à meia-luz do começo do dia, “será que eles acham que vão ser mais respeitados por isso?”. Odiava a forma que Paul se referia àquela pilhagem do arquivo de seu passado como “projeto Anthology”, como se realmente tivesse alguma coisa a ver com aquilo. Havia dito não ao Live Aid, ao USA for Africa, à Anistia Internacional, ao Rock and Roll Hall of Fame, a Hollywood, à MTV (cinco ou seis vezes, pelo menos), a todo produtor de qualquer tributo que, por melhor que fossem as intenções, apenas queria a fama da reunião dos Beatles em benefício próprio. Não ia concordar em voltar os Beatles justamente para Paul, ainda mais depois de dois ou três cutucões que o ex-melhor amigo havia lhe dado em entrevistas. E daí que George Harrison estava falido? Ele que arrumasse uma Yoko pra tomar conta do dinheiro.

Mas o que mais incomodava Lennon era o fato de, 30 anos depois de seu fim, os Beatles ainda ocuparem as manchetes dos jornais. Se sentia preso a uma ditadura em torno do nome do conjunto que faria com que qualquer gesto seu parecesse ainda preso aos anos 60. Era apenas isso que lhe fazia enclausurar-se cada vez mais no caminho entre sua fazenda no norte da Inglaterra e a casa/escritório do Dakota. Desde que Sean Lennon nasceu, gravou apenas cinco álbuns, cada um deles com quatro anos de diferença entre si, todos saudados como “Lennon volta à velha forma”. Depois de Double Fantasy vieram Heart and Soul (de 1984, produzido por Nile Rodgers), Back Home (de 1988, nova parceria com Phil Spector), Road (de 1992, coletânea de gravações em festas de amigos, seu único vínculo com o palco) e Closer (de 1996, composto e gravado apenas ao piano, produzido por Don Was). Estava cansado de ser tratado como uma relíquia de uma época de ouro, mas não via outra forma de expressar-se em público e não ser envolto em nostalgia. Ainda mais quando observava o pop que tomava as paradas do ano 2000.

Misturaram o conceito da Beatlemania com uma nuance hip hop e nascem o pop jeca dos Backstreet Boys, ‘N Sync e companhia limitada. Diluem a fase de transição (65-66) dos Beatles com rock de arena e criam o britpop de bandas como Blur, Oasis, Stereophonics, Travis, Radiohead… A nova psicodelia do rock independente (Flaming Lips, Mercury Rev, Olivia Tremor Control, Gorky’s Zygotic Mynci, Grandaddy, Badly Drawn Boy, Neutral Milk Hotel) nada mais é que o tratamento épico de Abbey Road levado a discos como Yellow Submarine ou Let it Be. Hits modernos de Beck e Chemical Brothers surrupiam a base de Tomorrow Never Knows. Os anos 90 eram uma chatice para Lennon, que só saiu de casa para assistir a “shows de rock”, como gostava de enfatizar (a saber: Chuck Berry, Teenage Fanclub, James Brown, Happy Mondays, Nirvana e Jimmy Page com os Black Crowes – “pode parecer brega, mas eu adoro Led Zeppelin”). Não gostava de música eletrônica e cada vez mais se aprofundava em música negra, seu grande e confesso amor musical. Ciente de sua celebridade, passava a constranger repórteres e colegas ao simplesmente responder “rock’n’roll” às perguntas que lhes eram feita. Fazendo-se de bobo, dava a todos de forma polida e sarcástica o seu ponto de vista sobre as coisas. Aproveitando-se do mote autopublicitário de Lennon, os roteiristas do programa humorístico Saturday Night Live o eternizaram em sua única aparição pública de 1990, no natal, quando fizeram um programa inteiro em que sua única fala resumia-se a repetir “rock’n’roll”.

Chegava novamente dezembro de um ano com fim zero e Lennon sabia que estava ficando mais velho. Costumava duvidar que seu nascimento fosse realmente em outubro, uma vez que a cada dez anos, em dezembro, dava um passo crucial em sua trajetória de vida. Sua mãe (como ele) era relapsa o suficiente para o ter registrado na data errada. Mas sabia que dezembro era um mês importante em sua vida, o que fazia com que constantemente – e intimamente – se comparasse com Jesus Cristo. Não como um filho de Deus, John sequer acreditava nisso (“Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”, cantou), mas como um comunicador, um doutrinador das massas, uma pessoa cujo nível de identidade com o público o tornasse extremamente popular. E lembrou que o dezembro de 1980 foi marcado por dor e sofrimento, como se Judas tivesse vindo sete anos depois. Não fosse o pobre guarda-noturno que se jogou em sua frente (Fabio, era esse o nome?), talvez estivesse morto 20 anos antes.

E John Lennon pensou o que teria acontecido se tivesse morrido quando aquele fã maluco o tornou alvo. Tirando uma ou outra música com um certo timing temporal e uma série de aspas dadas de bandeja à imprensa abelhuda, sua influência nas últimas duas décadas era mínima. As pessoas ainda queriam o Beatle John, sem pensar que Revolution, Happy Xmas e Imagine eram canções políticas, Mind Games falava de amor, Help! era um grito de desespero e Instant Karma cantava a urgência da vida. Tudo que tinha dito havia se perdido entre refrões grudentos e letras simples e diretas; a racionalidade de sua expressão trocada pelo ímpeto do rock em estado bruto. Ninguém estava prestando atenção no que eles estava dizendo. Nunca estiveram.

Dias estranhos, de fato. Por isso ele pensa se vale voltar a aparecer no dezembro do ano 2000 ou se vai romper as expectativas com o silêncio que acompanha parte de sua carreira? Pessoalmente, é uma época crucial, troca de estação e rito de passagem. Para o público, é apenas o mês de natal em que ele terá sessenta anos. Será que valeria a pena voltar? Sim, vale. Cante John, estamos escutando.

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O não de Yoko Ono
A íntegra da declaração da viúva de John Lennon à justiça norte-americana, quando da ocasião do pedido de redução da pena de Mark Chapman

“Não é fácil para mim escrever esta carta, uma vez que ainda é muito dolorido pensar no que aconteceu naquela noite e verbalizar meus pensamentos de uma maneira lógica. Com seu único ato de violência, o ‘sujeito’ cuidou de mudar minha vida inteira, devastar os filhos (de Lennon) e trazer profunda tristeza e medo para o mundo. Foi, certamente, o poder de destruição trabalhando. Sua soltura dará um sinal verde para os outros que quiserem seguir as pegadas do ‘sujeito’ para receber a atenção do mundo. Temo que vá trazer de volta o pesadelo, o caos e a confusão. Eu e os dois filhos de John não nos sentiríamos seguros pelo resto de nossas vidas. Pessoas que estão em posição de alta visibilidade como John também se sentirão inseguras”
Yoko Ono

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Música inacabada
A discografia de John Lennon extende-se à medida que suas gravações não-oficiais continuam sendo lançadas

Unfinished Music No. 1 – Two Virgins
11 de novembro de 1968
A química instantânea entre John e Yoko fez com que o casal se entregasse a uma série de projetos pessoais, entre filmes, exposições e o próprio relacionamento. Two Virgins é o primeiro experimento musical da dupla. Musical é força de expressão, uma vez que o álbum consiste apenas de gravações caseiras superpostas como uma enorme colagem a la Revolution 9. A capa com os dois como vieram ao mundo é a responsável por torna-lo memorável.

Unfinished Music No. 2 – Life with the Lions
26 de maio de 1969
Continuação de Two Virgins, Life… retrata o primeiro de uma série de abortos que interromperam o sonho de Lennon e Ono tornarem-se pais do mesmo filho. O disco protesta quanto ao fato a maternidade do hospital Queen Charlotte não ter arrumado uma cama extra para Lennon ficar ao lado de Yoko durante o processo, tanto na capa (em que Lennon aparece deitado no chão do hospital) quanto na faixa No Bed for Beatle John. O disco ainda passa por momentos delicados da história do casal, com a gravação do coração do filho que mais tarde morreria (em Baby’s Heartbeat) e o luto por ele (em Two Minutos Silence).

Wedding Album
20 de outubro de 1969
O último disco experimental do casal, Wedding Album era o terceiro disco solo e comemora o casamento celebrado no dia 20 de março de 1969, em Gibraltar. O disco consiste de um exercício da terapia primal de Arthur Janov (a faixa John & Yoko, em que um diz o nome do outro de todas as formas possíveis) e a gravação de um de seus primeiros Bed-Ins, em Amsterdam.

Live Peace In Toronto
12 de dezembro de 1969
Um dos muitos dream teams que ex-Beatles entraram, a banda deste show contava com John, Yoko, o baixista Klaus Voorman (irmão de Astrid Kirchnerr e autor da capa de Revolver), Eric Clapton e o baterista Alan White (Yes). Mas o clima aqui ia além da música e queria falar de liberdade de expressão, com Yoko competindo com a guitarra de Clapton para ver quem faz mais barulho.

John Lennon/Plastic Ono Band
11 de dezembro de 1970
O primeiro álbum solo propriamente dito de Lennon (foi gravado simultaneamente com o homônimo de Yoko Ono, outro disco expressivo), Plastic Ono Band mostra o ex-Beatle colocando todas as frustrações para fora e fazendo com que todos conseguissem identificar-se com ele. “O sonho acabou, o que eu posso dizer?”, contentava-se em God. Tornava-se confessional ao extremo ao expor ainda mais a ausência materna em sua vida com Mother e My Mummy’s Dead. Outras faixas resumem seu sentimento individualista nos títulos, como Isolation, I Found Out e Working Class Hero. Com este álbum, Lennon sacode a poeira beatle e nasce um novo artista, disposto a se reescrever.

Imagine
9 de setembro de 1971
Imagine continua a linha aberta em Plastic Ono Band, embora numa vertente mais pop e menos visceral (apesar das presenças de Gimme Some Truth e da anti-McCartney How Do You Sleep?). Baladas como a faixa-título, Jealous Guy, Oh! Yoko, a existencialista How? e a bela Oh My Love trazem um Lennon mais doce e pacífico, digerível e consumível, sem perder a essência de seu trabalho, a insegurança na maturidade, explicitada no boogie rock de It’s So Hard e I Don’t Want to Be a Soldier.

Some Time In New York City
12 de junho de 1972
Outro álbum assinado como um casal, Some Time… é um álbum duplo cujo primeiro disco é carregado de teor político, listando ativistas como John Sinclair e Angela Davis ao mesmo tempo que falava de causas polêmicas como a penitenciária de Attica e o atrito entre irlandeses e ingleses e criticava o sistema de celebridades e educacional fomentados pela sociedade capitalista. A idéia era dar as notícias às pessoas, por isso a capa imitava um jornal. O segundo álbum conta com uma versão ao vivo para Cold Turkey e a participação de John Lennon num show de Frank Zappa. Mais que consistente, Some Time… é um álbum pitoresco e cede ao declínio entre seus dois discos anteriores.

Mind Games
9 de novembro de 1973
O disco de 73 faz com que Lennon volte às políticas individualistas de seus dois primeiros álbuns, embora sem tanta convicção. Mesmo com o arranjo horizontal da faixa-título espalhando uma placidez pôr-do-sol por todo disco, Mind Games não tem a consistência de álbum que todos os discos anteriores de Lennon tiveram.

Walls And Bridges
26 de setembro de 1974
Descrito como “uma carta aberta à ausência de Yoko”, Walls and Bridges foi gravado durante o período de sua vida que Lennon batizou de “fim-de-semana perdido”, quando entregou-se às regalias da vida de celebridade na Califórnia, saindo para farras intermináveis com Ringo, Keith Moon e Elton John., deixando Yoko Ono em Nova York por mais de um ano. O disco reflete bem o estado de espírito de Lennon à época, entre o devaneio (#9 Dream), a confissão (Going Down on Love) e o remorso (What You Got).

Rock ‘N’ Roll
17 de fevereiro de 1975
Lennon desce aos porões da adolescência para, ao lado do parceiro Phil Spector, resgatar seus vínculos seculares com sua arte essencial, o rock primitivo. Ele visita Elvis (Just Because), Buddy Holly (Peggy Sue), Gene Vincent (Be Bop-A-Lula), Ben E. King (com a definitiva versão para Stand By Me), Chuck Berry (You Can’t Catch Me e Sweet Little Sixteen), Little Richard (Slippin’ and Slidin’), Sam Cooke (Bring It On Home to Me), entre outros. Num álbum memorável que prevê a aposentadoria do artista ao encerrar com um profético “Goodbye!”.

Shaved Fish
24 de outubro de 1975
Ao nascimento de Sean Ono Lennon, John despediu-se do mercado com a coletânea Shaved Fish, em que reunia seus maiores sucessos em carreira solo antes de recolher-se à sua vida de dono-de-casa (househusband, como brincava). O grande atrativo da compilação era o fato de tornar disponível faixas como Cold Turkey, Instant Karma, Give Peace a Chance, Power to the People e Happy Xmas (War is Over), que antes só haviam aparecido em compactos.

Double Fantasy
17 de novembro de 1980
Último disco de Lennon em vida, Double Fantasy celebra o auge da vida a três com Yoko e Sean com a atmosfera caseira e pé-no-chão daqueles dias. A faixa (Just Like) Starting Over pode ser considerada responsável pelo retorno de centenas de artistas dos anos 60 que sumiram de cena naquele começo dos 80. Mas esta é a única responsabilidade do álbum, em que o autor prefere explicar como enxerga a vida aos 40 anos de idade em canções contemplativas como Watching the Wheels, Woman e Beautiful Boy (Darling Sean). Equilibrando com o bom humor do marido vem algumas das músicas mais pop da discografia bizarra de Yoko Ono.

John Lennon Collection
8 de novembro de 1982
O primeiro lançamento oficial após a morte de Lennon, a coletânea é, na verdade, um upgrade de Shaved Fish, com quatro faixas de Double Fantasy e uma de Rock’n’Roll. A versão em CD conta com quatro faixas a mais.

Milk And Honey
23 de janeiro de 1984
Começa a pilhagem do arquivo póstumo de Lennon, quando Yoko Ono comete o erro de lançar o disco que Lennon estava planejando quando morreu. Milk and Honey é uma pálida continuação de Double Fantasy, com faixas ainda na pré-produção, sem o tratamento genial que somente Lennon (e às vezes, nem ele) poderia dar às próprias canções. Um hit – Nobody Told Me – e o disco foi recolhido de catálogo pela própria viúva, tornando-o uma espécie de “pirata oficial”.

Live In New York City
24 de fevereiro de 1986
Dois anos depois, a viúva volta a lançar mais material inédito de Lennon. A diferença é que Live… é um show inteiro – e que show! A última aparição de Lennon ao lado de Yoko num mesmo palco, o disco flagra a apresentação de Lennon com a Elephant Memory Band no dia 30 de agosto de 1972. Com um som cheio e massudo (há duas guitarras, dois teclados, dois baixos, dois tudo), Lennon desfila seu magnetismo de palco com brilho ímpar, botando toda a platéia no bolso. Memorável.

Menlove Ave.
3 de novembro de 1986
Mais sobras de estúdio voltam a aparecer em forma de coletânea. Aqui o material é tirado das sessões de Walls and Bridges (Steel and Glass, Old Dirt Road, Here We Go Again e Rock and Roll People) e Rock’n’Roll (Angel Baby, To Know Her is to Love Her e Since My Baby Left Me). O disco é batizado após a rua em que Lennon cresceu em Liverpool.

Imagine: John Lennon
10 de outubro de 1988
Nova coletânea, novas raridades. Trilha sonora para o documentário Imagine (feito em resposta à escandalosa biografia The Lives of John Lennon, de Albert Goldman), o disco duplo conta a história de Lennon desde os Beatles até 1980, ressuscitando-o do passado com uma faixa que seria retomada pelos beatles remanescentes em 1996, Real Love.

Lennon
30 de outubro de 1990
Nova coletânea, novas raridades. Esta caixa de quatro vinis está fora de catálogo desde que foi lançada, mas conta com um tratamento visual de primeira e com as últimas apresentações ao vivo de Lennon (sem Yoko), quando o ex-Beatle subiu no palco com Elton John para cantar I Saw Her Standing There e Lucy in the Sky with Diamonds, em 1974.

Lennon Legend
27 de outubro de 1997
Feita sob medida para a geração Oasis, a coletânea Legend volta a enfatizar os hits do autor, uma vez que a John Lennon Collection desapareceu das prateleiras inglesas. Nada a acrescentar na discografia do inglês, a não ser popularidade.

John Lennon Anthology
2 de novembro de 1998
Aguardada caixa com o melhor do arquivo de Yoko Ono, Anthology traz momentos memoráveis e não-oficiais da carreira de Lennon, como paródias (ele transforma Yesterday num filme de horror e imita Bob Dylan diversas vezes), participações especiais em programas de TV, shows antológicos (como a apresentação sem bateria no lendário teatro Apollo), sua versão para Be My Baby (orquestrada pelo próprio Phil Spector), além de versões alternativas, caseiras, diferentes, inesperadas e os conflitos no estúdio envolvendo Lennon. Para quem não é fã, a faixa é como uma biografia não-autorizada, como se pudéssemos olhar a história de Lennon pelo buraco da fechadura. Para o fã, é obrigatória. Para quem não pode pagar a caixa, a gravadora lançou simultaneamente a coletânea Wonsaponatime.