José Saramago (1922-2010)

Morreu. Que merda.

Um soco na boca do estômago

Dezovê

Poizé, deixei pra ver O Jardineiro Fiel depois da hora e não o inclui entre os melhores de 2005 enquanto o ano ainda vigorava – mas faço isso djá. O terceiro filme de Fernando Meirelles é mais um salto quântico na carreira do diretor brasileiro, em diversos aspectos: cinematografia, densidade dramática, complexidade do argumento e, principalmente, a escolha do tema. A equação “indústria farmacêutica + África” pode parecer a princípio insípida como uma nota de agência de notícia gringa numa página burocrática de noticiário internacional, mas pode ganhar cores mais densas aos destrincharmos cada um dos elementos, onde que chegamos em “empresas multinacionais que faturam cada vez mais dinheiro + continente mais miserável do planeta em que centenas morrem por dia”. É nessa tecla que bate Meirelles. E bate. E bate. Para que não fingimos que não sabemos o que está acontecendo.

Amparado pelo ágil thriller hiperrealista do escritor John Le Carré e por ótimas e discretas atuações (Ralph Fiennes e Rachel Weisz dissolvem seus sentimentos lentamente, deixando a dor e a raiva transparecer sutis, dentro do espectador – e não na tela), Meirelles humilha. Cutuca feridas abertas em diferentes níveis, lembrando que a hipocrisia humanitária de governos fechados com empresas arrogantes sem medo de exibir o poder do dinheiro é a mesma que nos faz fechar o vidro do carro quando alguém mais pobre (e, via de regra, pardo, pelo menos) se aproxima. O filme não é um apelo às armas ONG, e sim a voz da consciência virando nosso olhar para onde fingimos não ver.

Os temas abordados pelo diretor de Cidade de Deus vão da epidemia de Aids da África, matadores de aluguel e política corrupta à especulações no mercado financeiro, fraudes em escala global e o sorriso falso do benfeitor. “É tudo parte de um mesmo jogo”, sublinha o diretor. Ao mostrar campos de refugiados sendo dizimados por piratas do deserto, pacientes morrendo por negligência médica, o exercício dos pequenos poderes e a descrição de torturas bárbaras, Meirelles o tempo todo faz e refaz a rede de contatos, dados e troca de informações – ativistas online, mensagens em secretárias eletrônicas, conversas em campos de golfe, ameaças de morte, cartas comprometedoras e relatórios encobertos. É tudo parte de um mesmo jogo.

Enquanto a trama se desenrola e se revela, a direção contrasta a miséria humana com a riqueza africana, seja nas paisagens, nos cantos ou nos olhares das crianças brincando na rua, ao mesmo tempo em que a burocracia européia revela-se mais cruel do que a tomada sangrenta do continente, séculos atrás, o tempo todo representadas por estátuas heróicas e altos palácios – a invasão e destruição continuam, mas há mais business que o mero aprisionamento de escravos. A câmera treme como a de um cinegrafista amador tentando filmar um vulcão em plena erupção, a lava parece que desce devagar, mas já queima o solo longe dos olhos, por baixo.

Meirelles começou bem debaixo dos nossos narizes, tratando o apartheid social brasileiro velado (a empregada doméstica) como uma crônica bem-humorada sobre nosso preconceito em seu segundo filme, Domésticas, de 2001 (O Menino Maluquinho 2 foi o primeiro). Depois foi conhecer o lugar de onde elas vêm, num filme de ação que tornou-se o melhor filme brasileiro de todos os tempos (e ponto), com Cidade de Deus. Agora volta-se para o continente de onde as cidades de deus do mundo vieram para nos pegar sem fôlego, como um soco na boca do estômago, e enfiar a nossa cara em uma África mais intensa do que o grande continente favelado que a nossa culpa branca exotique finge não ver para esfregar o problema: é o maior campo de concentração da história, o verdadeiro Holocausto.

Não sei qual é o próximo filme do sujeito, mas esse eu não vejo tão depois. Inda não viu? Vai ver. Divide o posto como melhor filme do ano com A History of Violence, do Cronenberg, mas este (do meu cineasta favorito) é mais um exercício de estilo. O filme de Meirelles também, mas há tantas nuances e camadas de preocupação que não dá pra classificá-lo apenas como um filme, como eram os dois filmes anteriores. Há um trabalho de explicação e conscientização que vai além da mera arte, embaralhando cinema com jornalismo, comunicação e política. Algo que já vem sendo feito pela nova safra de documentários da virada do século (todo mundo, do Eduardo Coutinho ao Michael Moore), pelos primeiros feitos da geração DV e por diferentes produções de TV para o cinema (das maxisséries da HBO aos filmes do Guel Arraes). Só que Meirelles está a quilômetros de distância, abrindo caminho – fora que internacionalizou o gestual de Renato Aragão (o V de vitória intercalado rapidamente com o polegar de positivo) na transmissão da festa do Oscar. O Jardineiro Fiel já é o que o cinema vai ser.

E, a propósito, não vi Manderlay ainda. Vou corrigir essa falha também.