Punk contra o falso patriotismo

“A gente tinha a semana da pátria para fazer uma programação musical e a ideia era discutir um pouco sobre o significado dessa semana e aí a gente pensou muito nessa onda de falso patriotismo que ganhou voga nos últimos anos, a gente sabe porque, e então eu pensei em algo que antagonizasse muito com isso, que é o movimento punk”, explica o responsável pela programação de música do Sesc Av. Paulista, Fernando de Lima, sobre a origem do festival 1, 2, 3, 4 – O Punk Segue Muito Vivo, que acontece na unidade entre os dias 6 e 11 de setembro – e à exceção do feriado do dia 7, o palco no 13° andar recebe exponentes de diferentes fases do punk brasileiro, do In Venus ao Devotos, passando pelo Flicts, Mercenárias, Charlotte Matou Um Cara, Ratas Rabiosas, Black Pantera e Mercenárias.

“O punk e o anarquismo fazem um contraponto bom a esse movimento estranho que a gente tem nos últimos anos e faz a gente refletir sobre o significado de país e de tudo mais”, continua o programador, que reúne dois shows por dia em cada uma das datas – e cada show tem sua leva de convidados, engrossando a genealogia do movimento no Brasil. ““Na hora de escolher as bandas, a primeira coisa que a gente pensou foi no encontro de gerações. E não é só dos pioneiros com a molecada que está fazendo agora, mas também uma geração intermediária muito interessante que, nesse caso, é representada pelos Devotos e pelo Flicts, bandas dos anos 90 que seguraram a onda do punk nessa década”. Entre os convidados, nomes como Jonatta Doll, Edgard Scandurra, Rodrigo Lima (do Dead Fish), Lê (Gritando HC), Ariel (Restos de Nada), Iéri (Bulimia), entre outros. Mais informações sobre o festival abaixo (e no site do Sesc).  

Cannibal mostra como é

Foto: Aline Sales

Foto: Aline Sales

Mítico vocalista do grupo punk pernambucano Devotos, Cannibal ataca em duas frentes neste final de 2018: lançando o livro Música Para Quem Não Ouve, que reúne as letras de sua histórica banda, e o disco novo do grupo de dub Café Preto, batizado de Oferenda. “Café Preto é minha valvula de escape depois do futebol”, explica Cannibal por email. “Adoro música, sou criado no Alto José do Pinho, esse bairro é uma rádio ligada em varias estações onde tudo rola, você sai andando pela comunidade e escuta tudo: samba, brega, rock, reggae, música cubana, afoxé, maracatu, de tudo… Sendo assim não tem como você ser bitolado a um estilo. Fiz a Café Preto no pensamento de musicar as letras que não entraram na Devotos”. Ele antecipa o primeiro single do disco, “120 Km” que tem a participação de Spok da Spok Frevo Orquestra, em primeira mão para o Trabalho Sujo.

“Não queria fazer uma banda, a ideia era só mostrar um lado meu que as pessoas não conheciam, mostrando as músicas as pessoas ficavam perguntando quando ia ter show e eu falava que não ia rolar porque a ideia era só gravar um disco com influencia na música jamaicana”, ele continua. “Foi tanto incentivo que resolvi montar a banda mas resolvi que teria um conceito, a Café Preto não é só musica. Então convidei um amigo estilista chamado Eduardo Ferreira para fazer o figurino, gosto muito dos cantores que se vestem para cantar: Marvin Gaye, David Bowie, Gregory Isaacs, Grace Jones, todos uma elegância impecável. O novo figurino é feito por Chico Marinho, os sapatos por Jaison Marcos e as fotos de Renato Filho.” A banda fez parte da geração que revelei como curador do Prata da Casa do Sesc Pompéia em 2012.

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“O primeiro disco foi lançando em 2012 e teve como carro-chefe a música ‘Dandara’, que virou clipe, e a mixagem ficou por conta do mestre Victor Rice. O novo disco se chama Oferenda, o disco tem a mixagem e masterizarão de Pierre Leite, que é tecladista e efeitos na Café Preto. Oferenda tem as participações de Lucas dos Prazeres, Maestro Spok, Céu, Claudio Negrão no contrabaixo, poeta Miró da muribeca e Maria Vitória e Marina, minha filha e a de Pierre. É um disco com sonoridade diferente, apesar de também tem reggae, não sei rotular, mas é um disco com muitas músicas para dançar. As letras ao contrário da Devotos, na sua maioria são temas fictícios relacionadas ao cotidiano afetivo, relacionamentos e etc, só a música ‘O Samba’ que tem uma temática social. A capa foi feita por Mabuse e Haidde e o desenho por Ganjja”, ele conta, explicando que apesar das referências a orixás do candomblé, não é frequentador. “Respeito todas as religiões, mas tenho grande admiração pela umbanda e pelo candomblé.” Ele conta que nos shows também canta “Preciso Me Encontrar” e “Gostoso Demais”, imortalizadas respectivamente por Cartola e Dominguinhos – e o show de lançamento do disco em São Paulo vai acontecer no Sesc Carmo, dia 29 deste mês, com participação de Alessandra Leão (mais informações aqui).

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Sobre o livro, ele diz que a ideia surgiu porque muitos o abordavam na rua elogiam sua música mas dizendo que não entendiam as letras. “É engraçado, mas preocupante. Formamos a banda para mudar um quadro social através da música, conseguimos isso aqui na comunidade o Alto José do Pinho, que hoje é conhecida pela sua eferverscência cultural. Muitos problemas ainda precisam ser resolvidos, mas conseguimos resgatar a auto estima da comunidade.” A ideia do livro era ter a cara de fanzine dos anos 80, como se tivesse sido feito com máquina de escrever e fotos chapadas como se fossem xerox. “Os fanzines dos anos 80 eram nossa rede de informação, temos o maior respeito e consideração pelos fanzineiros, até hoje damos entrevista para fanzines”, continua. O livro também tem trabalhos de artistas plásticos convidados pelo grupo, como Darlon, Ganjah e Caio Cezar. “Todos maravilhosos. É bom trabalhar com pessoas que são fãs das banda, elas acompanham e sabem sua história, aí o trabalho flui positivamente.”

“A literatura faz você viajar e ter sua própria opinião em relação ao que está lendo, não tem uma massa sonora te influenciando a ter uma visão radical pelo fato do som ser punk rock”, ele continua explicando sobre o livro. “A sonoridade pode ser pesada, mas a letra pode ser romântica, a sonoridade pode ser uma balada mas a letra pode ser politizada. E aí que o legal do livro é que é só você e a letra, vpcê viajando no que se absorve das frases, dos refrões.”

Sobre o punk rock em si, ele segue ativista. “O movimento não tem a força dos anos 80, mas continua atuante, veja por exemplo os fanzines, que continuam sendo produzidos em varias categorias, as bandas que continuam suas produções e como tem surgido novas bandas”, ele continua. “A tecnologia separou bastante o movimento punk, apesar da facilidade de se conhecer através da internet, o lado humano de se encontrar, trocar ideia, fazer os eventos não é mais o mesmo, Hoje é como se tivesse vários movimentos punk dentro do próprio movimento, a ideologia de formar uma banda para protestar ou reivindicar ficou nos anos 80. Hoje a maioria que faz uma banda quer tocar em primeiro lugar ‘não importa onde’. Se a grande mídia não tivesse fudido o movimento punk hoje ele seria referência social como é o rap!”

O assunto inevitavelmente caminha para a atual situação política do país: “Não se muda um país com ódio, até para você reivindicar causas sociais você tem que fazer com ternura, mas nunca com ódio”, prossegue. “Eu sou a favor que não perdamos a liberdade de expressão que nossos pais conquistaram com muito suor, sangue e vidas ceifadas no período da ditadura. Demos passos muito positivos socialmente falando: as mulheres estão organizadas e se auto-afirmando cada vez mais, a classe LGBT e outros segmentos também estão se afirmando, mostrando que podem pertencer à sociedade sem ter que se esconder e que existe uma indústria de entretenimentos voltada para essas pessoas e essa industria tem um retorno financeiro muito, muito grande para o Brasil. Não há como ignorar essa classe e os tratar como enfermos como algumas igrejas propõe. O princípio da educação é o respeito. Não fecho os olhos para a corrupção, mas não acredito que uma politica de ideologia fascista vá resolver nossos problemas!” É isso aí.

Psicodelia Konga