Corações ao alto

Ao começar a apresentação com “Fim de Festa”, do clássico disco que reuniu Itamar Assumpção e Naná Vasconcellos, a banda convocada por Fernando Catatau para celebrar o cancioneiro romântico brasileiro no espetáculo Pra Falar de Amor, que aconteceu no Sesc Pinheiros neste sábado, mostrou que não estava pra brincadeira. Um time de músicos, autores e intérpretes que pertence à nata da música popular contemporânea escancarou o teste de DNA que prova que sua musicalidade descende deste cânone que une uma parte importante da produção cultural brasileira do último século mas que não é visto como tal. A gênese desta celebração começou ainda no ano passado, quando Fernando fez algumas apresentações intimistas levantando este repertório que atravessa a própria genealogia de suas canções. E foi esperto ao manter esse clima mínimo mesmo com uma banda grande num palco tão amplo como a sala Paulo Autran. O minimalismo dos arranjos e das vozes contrastava com os sentimentos rasgados nas interpretações originais e com o visual da apresentação, em que as luzes de Cris Souto (que pareciam vir de Oz) equilibrava-se perfeitamente com as cores fortes do figurino de cada um e as imagens épicas projetadas por Isadora Stevani, que também assinava a direção de arte da noite. No palco, Catatau puxava um grupo que trazia Ava Rocha, Curumin (entre a bateria e o violão), Jasper, Bruno Berle, Paola Lappicy, Clayton Martin e Beatriz Lima que deslizaram por canções que rasgavam o corpo por dentro fazendo verter lágrimas, seja de paixão ou de fossa, sempre afundando aquele aço frio no peito dos ouvintes enquanto cutucava nosso subconsciente com músicas de Raul Seixas (“A Maçã”) Roupa Nova (“Bem Maior”), Roberto Carlos (“Amor Perfeito”), Jards Macalé (“Sem Essa”), Joanna (“Tô Fazendo Falta”), Djavan (“Um Amor Puro”), Lulu Santos (“Certas Coisas”), Eliane (“Amor ou Paixão”) e Alcione (“Você Me Vira A Cabeça”), colocando cada um dos integrantes no centro emotivo daquelas canções, além de passear pelo próprio repertório, sempre com outro intérprete cantando suas músicas, como “Quero Dizer”, “Solidão Gasolina”, “Transeunte Coração” e “Completamente Apaixonado”. A noite terminou num momento épico revisitando o momento mais romântico do repertório de Catatau, quando todos revisitaram a clássica “O Tempo” do Cidadão Instigado antes de encerrar a noite com “Hackearam-me”, do baiano Tierry, eternizada por Marília Mendonça. Foi de chorar – e tem que ter mais!

Assista a um trecho aqui.

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Mockers tocando Beatles

Que show! Três quintos do Cidadão Instigado – o guitarrista Régis Damasceno, o baixista Rian Batista e o baterista Clayton Martin – respondem como Mockers nas horas vagas, um grupo dedicado a tocar apenas versões de músicas dos Beatles de 1966 em diante. Na ativa desde o ano passado, só consegui vê-los em ação nesta quinta, quando o grupo apresentou-se dentro do Toca Aí, o mesmo projeto do Sesc Pompéia que botou o Instituto tocando Pink Floyd.

Por motivo de agenda, o grupo não pode se apresentar na Choperia, onde queriam e vem acontecendo os shows do projeto (o Forgotten Boys tocou Rolling Stones semana passada, não fui, mas já já posto uns vídeos que achei no YouTube do show). Sorte nossa. O Teatro funcionou perfeitamente para o tom ao mesmo tempo austero e informal da apresentação. Ao confrontar os três músicos olhando uns para os outros (devido ao desenho do teatro, cujo palco é ladeado por duas platéias), o show ganhou uma sensação de intimismo que parecia bater de frente com o aspecto clássico do repertório – tom que era quase sempre destruído por Rian, que insistia em dirigir-se ao público em inglês, trazendo todo o humor dos Beatles para um palco estritamente psicodélico.

E como tocam esses três. Mais do que chancelar a química musical que os três já trazem do Cidadão, o show serviu como apreciação de três grandes músicos. Clayton rezou a cartilha de Ringo Starr à risca, trazendo ao palco alguns dos momentos mais brilhantes do subestimado Ringo em seu instrumento – crescido à sombra do rock paulistano influenciado pelos anos 60, Clayton deixou os trejeitos e influências de Keith Moon e Nick Manson (característicos de seu jeito de tocar) para debruçar-se sobre a técnica do baterista beatle como sua única Bíblia pessoal. Rian, mais do que quebrar o gelo com suas piadas geniais e ridículas, tratava o baixo melódico de Paul McCartney com reverência e estilo, além de garantir os vocais mais agudos sem muita preocupação. E Régis, que nasceu abençoado por um timbre de voz que quase, quase, chega ao mesmo do de John Lennon, segurava não apenas as guitarras de John e George Harrison num único instrumento, como ainda o colocava para fazer as vezes dos teclados de algumas canções.

Foi memorável. Consegui filmar quase todas as músicas da noite (com a exceção das três primeiras – “Two of Us”, “She Said She Said” e “Taxman” – e das duas últimas – “Birthday” e “Tomorrow Never Knows” com direito à citação de “Within You Without You”), mas se eu fosse você não perdia o próximo show.