Suede – Head Music

, por Alexandre Matias

Mais texto desenterrado. Sempre fico na dúvida se o meu disco favorito do Suede é o Head Music ou o Coming Up. Nesse exato momento, é o Head Music, cuja resenha abaixo eu escrevi na época do lançamento, em 1999. Aperte o play:

A palavra “cabeça” em inglês – “head” – tem uma conotação sexual bem diferente da que tem em nosso idioma. “Head”, reza o vulgo, refere-se ao ato do sexo oral, para ambos os gêneros. Brett Anderson, líder do Suede (ou London Suede, se você for americano), batizou o quinto disco de sua banda após o grudento refrão da oitava música do CD, a tradicional “primeira do lado B”. Ele pede a boca lá – “Give me head/ Give me head/ Give me head” -, mas, percebendo a possibilidade de nem isso satisfazer, conforma-se com música, “music instead” (“música no lugar disso”). Criando a expressão Head Music, quase como um trocadilho “Give me Head Music instead”, Brett inventa um gênero para sua banda. Não é “música cabeça”, como o título em português pode supor. Porque, como ele mesmo diz, ao passar do refrão, puro Freud, “você sabe/ Tudo é fruto da mente”.

Ao mesmo tempo em que definia o som que tenta fazer há tanto tempo, o Suede chegava a 1999 com elegância ao auge de sua forma. Mesmo sem o guitarrista-fundador Bernard Butler (“seminal”, diriam os fãs mais ferrenhos), o grupo vem numa linha ascendente desde o último disco, o excelente Coming Up, de 95. Antes disso, o Suede era um misto de Smiths com David Bowie e Stone Roses, louvado pela imprensa britânica que encontrara no grupo, em 92, o antídoto perfeito para a corrente shoegazer (as guitarradas lentas de My Bloody Valentine, Ride e sobrinhos) que dominava a cena independente do país. Mesmo com um disco fraco e superestimado (batizado apenas com o nome do grupo e eternizado pelo beijo andrógino na capa), o Suede conseguiu terreno suficiente para que suas referências britânicas varressem os sussurros, a microfonia e a distorção dos anos 90 ingleses.

Se eles não são responsáveis pelo britpop (este deve ser Bowie, em Let’s Dance), eles ninaram a geração que se afirmou ao redor desse termo simplista que os semanários bretões inventaram para batizar o pop britânico da metade dos anos 90. Representantes influenciados e conhecidos do Suede (Oasis, Blur, Pulp, Elastica, entre outros – há o clássico trio entre Damon do Blur, Brett e Justine do Elastica) mais tarde tentariam dominar o mundo, no crepúsculo do rock alternativo americano, mortalmente ferido após o suicídio de Cobain. Mas logo abandonaram o caminho que abriram (cristalizado na trilogia Modern Life is Rubbish/ Parklife/ The Great Escape, do Blur) em meio a tensões internas, cobranças da mídia e o clima pesado que se instalou nas gravações do segundo disco e Dog Man Star (um disco incompreendido) saiu em 94 quase a contragosto, um retrato polido do clima amargo daqueles dias.

A tensão resultou com a saída de Butler, que foi substituído pelo jovem (17 anos na época) guitarrista Richard Oakes, que assimilou perfeitamente o papel do antigo integrante com sua guitarra assumidamente glam. O tecladista Neil Codling, convidado para as sessões do terceiro disco do grupo, ajudiu o grupo a seguir este caminho entre o glamour, a melancolia e a extravagância, abraçado pelo vocal e pelas letras de Brett. Coming Up, o terceiro disco, trazia um Suede vigoroso e expansivo, assumidamente glitter e querendo festejar antes da queda. O espírito poseur de Coming Up, de 95, questionava a seriedade da primeira fase da banda e encaixava-se como uma luva numa década que fingia poder experimentar todas as décadas anteriores.

Depois do renascimento de Coming Up, o Suede tirou férias e lançou o ótimo duplo Sci-fi Lullabies, com lados B de ambas as fases da carreira. Ao comparar os dois discos, vemos o quanto a afetação, os vocais e, principalmente, a composição passaram de preciosismo para a vulgaridade (no melhor sentido do termo), ironizando, na segunda fase da banda, o status de “banda perfeita” que o grupo tanto lutava no início da carreira.

Head Music coroava o novo caminho do Suede com uma coleção de canções que orgulharia tanto Marc Bolan quanto Scott Walker. Músicas cheia de estilo e groove, como se a banda – toda vestida em couro preto – girasse no centro de uma passarela de moda, se esparramando enquanto derrama litros de riffs pegajosos de guitarra anos 70 sobre uma base rítmica (Mat Osman e Simon Gilbert, baixo e batera). Ao redor da banda, Brett Anderson, magro, alto e cheio de poses, segura o microfone como um charuto entre o polegar e o indicador, cantando histórias urbanas sobre pessoas que só querem se divertir, entre romances e noitadas.

O disco começa com “Electricity”, que não faz jus ao todo do álbum. Apesar de fazer a ponte entre Coming Up e Head Music, a canção, que é o primeiro single do disco, tenta casar um riff ganchudo com um refrão populista à força e a música parece uma colagem forçada entre duas canções completamente diferentes: uma é “Electricity” mesmo, guitarra e baixo conspirando juntos sobre uma frase forte e fácil de se lembrar, a outra é o refrão, que se limita a cantar que “É maior que nós/ Maior que o universo”, em referência ao amor que antes era comparado com eletricidade. Mesmo sendo uma boa canção – mal resolvida, diga-se de passagem -, “Electricity” diminui ao ser comparada com o resto do disco. É uma cartão de visitas mal escolhido.

Head Music começa pra valer com “Savoir-Faire”, lenta e sinuosa, que vai crescendo aos poucos, contando a história de uma menina que tem lá seus defeitos (é burra como um rato, usa drogas), mas tem savoir-faire, tato, habilidade, jeito pras coisas. E tanto essa queda em relação à vida, essa forma noturna e hedonista de atravessá-la, quanto o groove irresistível que permeia a canção, uma espécie de soul/funk britânico são as duas maiores qualidades do disco.

“Can’t Get Enough” é o que “Electricity” deveria ser. Vibrante, pesada e despojada, ela nos pega pelo pescoço e sua mistura de rock clássico com o suíngue ditado pelo baixo e pela guitarra é um dos grandes momentos do álbum. Nela, Brett tenta explicar a opção pela androginia, como se pedisse desculpa pela afetação exagerada (e errada) dos primeiros álbuns. Não é androginia visual, ele corrige, é aproveitar o que os dois gêneros têm de melhor, é curtir a vida sem pensar se você é homem ou mulher. “Me sinto real quando ando como uma mulher e falo como um homem das cavernas”, ele dá de cara, sem rodeios. E explica que sua atração é pela atração ( “Me sinto real como um homem gosta de uma mulher, como uma mulher gosta de um homem”, num verso perfeito, em inglês – “like a man like a woman, like a woman like a man”) e que ele precisa dela, porque, como berra no refrão “cantar não é suficiente”.

Mesmo a baladaça “Everything Will Flow”, melancólica e épica, e a bela, tímida e dramática “Down” não deixam o groove parar. Mesmo tirando o protagonista das canções das festas e colocando-o debruçado na janela, observando a cidade à noite, as duas mantém o ritmo do disco. Em “Down” é possível sentir o dedo do produtor Steve Osbourne (que trabalhou com o Happy Mondays), que casa eletrônica com cordas sem cair na pieguice. Steve entrou no lugar do velho produtor Ed Buller, que trabalhou com a banda nos três primeiros discos, porque o grupo procurava novas sonoridades. Ambas músicas falam de como a cidade oprime as pessoas (a primeira reza que “tudo passa” sem muita esperança, a segunda ouve todos dizerem como ele está mal) e que a única forma de curtir à vida é entregar-se aos seus prazeres. “Down” nos consola ao dizer que a vida é só uma canção de ninar, à espera do sono, então vamos nos deixar levar por ela e pensar nos sonhos que queremos ter quando dormirmos.

Depois das baladas, três pérolas. A belíssima “She’s in Fashion”, com cordas derretidas de fazer Marvin Gaye ficar com inveja, vem cambaleando e dançando ao mesmo tempo, enquanto Brett investe mais uma de suas cantadas em forma de música. A insinuante “Asbestos” com sua guitarra seca e bluesy e um insistente Moog ao fundo é um convite à dança do acasalamento, um hino à descoberto do sexo à flor da puberdade. “Head Music” é feita para dançar apenas com os ombros, o tipo de dança que só se dança quando se está muito próximo da outra pessoa.

“Elephant Man”, a primeira composição não-Brett (é de Neil) da nova fase da banda, é uma tola tentativa de casar glam rock com a psicodelia de Syd Barrett solo, mais ingênua do que ruim. “Hi-Fi” desacelera o disco num groove biônico que passa a filtrar as últimas faixas. E tanto “Indian Strings” quanto “He’s Gone” eliminam completamente o suíngue glam do disco – esta última, uma bela balada tradicional. “Crack in the Union Jack” fecha o disco de forma abrupta, numa balada pseudo-política ao violão (com seu refrão de roda de bicho-grilo, “há uma racha enorme na bandeira britânica” – a Union Jack).

Mas se as últimas faixas baixam a bola de Head Music, entre “Savoir-Faire” e a faixa-título, o Suede manda e desmanda. Sete músicas que valem o preço do disco e consagra o grupo entre os grandes nomes ingleses desta década. Como compositor e vocalista, Brett Anderson se equilibra com estilo entre o excesso de sarcasmo de Jarvis Cocker, do Pulp, e as colagens visuais de Thom Yorke, do Radiohead. E como banda de rock, o Suede não apenas convence como bate no peito pra mostrar quem é quem nessa brincadeira.

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