“Sob o efeito de um poderoso psicotrópico”

, por Alexandre Matias

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Bacurau não é só um filme. Engendrado por uma década pela dupla pernambucana Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, ele ocupa o espaço de duas horas em uma tela audiovisual para contar uma tensa saga de vingança e violência, mas isso é uma camuflagem. O que ele propõe ao espectador é muito mais importante que a história que está contando – como Kleber já havia feito em seus dois filmes anteriores, O Som ao Redor e Aquarius, só que desta vez com muito mais eficácia. Cada detalhe, cada frase, cada referência funciona como um gatilho para que o espectador faça uma série de questionamentos sobre o que realmente está assistindo. O contexto brasileiro é essencial para que se sinta todo seu efeito.

Olhando de fora (e o filme começa assim), Bacurau é ficção científica. Por mais que envolva-se com inúmeros outros gêneros pelo percurso, sua abertura mirando o espaço e mostrando a curvatura do planeta, conversa com a abertura de todos os Guerra nas Estrelas e o desfecho de 2001 (além de provocar o terraplanismo), enquanto uma canção de Caetano Veloso cantada por Gal Costa sublinha as intenções a se ver com um objeto não-identificado. A localização temporal (“daqui a alguns anos…”, como no início do curta Recife Frio, que Kleber lançou em 2009) e as aparições dos drones em forma de discos voadores de filmes dos anos 50 só reforçam a prateleira em que os diretores colocam seu filme, embora pelo resto da história pouco nos faz lembrar de que estamos olhando para o futuro (e quando o faz, faz gelar a alma).

Acompanhamos a volta de Teresa (Bárbara Colen) para sua cidade-natal, a minúscula vila que batiza o filme. Ela e outros personagens nos servem como guias para conhecer a população local: heterogênea, peculiar e intimamente ligada à cultura, como o filme nos lembra com frequência. É uma vila que, se muito, ultrapassa a centena de moradores e certamente não chega ao milhar – não dá nem para se referir como cidade, embora hospede um microcosmo universal. Mas, como explica o pai de Teresa, Plínio (Wilson Rabelo), logo no funeral que inicia o filme, são pessoas que vivem suas próprias histórias como querem e as levam para todos os lados do mundo – e que orgulham-se de sua honestidade. A apresentação de Bacurau e seus habitantes é lenta e arrastada, como a rotina numa cidade daquele tamanho, e mostra personagens que são alegorias e amálgamas de personalidades estranhas, curiosas e conhecidas de qualquer brasileiro, desenhando uma estranha desordem que permite que aquele lugar sobreviva.

Entre eles e o que chamamos de realidade há o prefeito do município, Tony Júnior (Thardelly Lima), um dos poucos vínculos da vila com o mundo exterior. A forma como a população (des)trata o prefeito é sintomática do principal paralelo que o filme quer estabelecer com o Brasil: a separação de classes. Bacurau não é só uma vila, um estado ou uma região inteira do Brasil – é toda uma parte da população vista pela outra como mão de obra e fonte de diversão (muitas vezes, ao mesmo tempo, como na cena em que o prefeito, cruel e indiferente, leva uma pessoa embora). Isolada do resto do mundo – o termo “Brasil do Sul” é pronunciado apenas uma vez, logo no início, e não sabemos se é uma realidade geopolítica ou à forma como se referem à região -, Bacurau depende de uma série de recursos de fora – da água trazida para a cidade por um caminhão-pipa a doações feitas por políticos com motivos eleitoreiros – que incluem até remédios tarja preta. É uma alegoria, mas é muito real – a cena do caminhão de livros é especialmente crua e cruel.

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A rotina da cidade é atravessada por uma série de assassinatos que mudam o enredo do filme. A entrada de novos personagens – e novos idiomas – em sua história faz com que o ar rural e o aceno à ficção científica ceda a uma avalanche de referências a filmes de ação, filmes sobre cangaceiros, road movies, filmes de guerra, filmes de terror e até filmes de super-herói. Os diretores desfilam sua paleta de referências ao nos apresentar ao grupo antagonista da pequena Bacurau, nos levando finalmente ao confronto final – e à catarse do público.

É nesta parte que conhecemos Lunga, de Silvero Pereira. Personagem central na história, Lunga só surge de fato em seu terceiro ato e converge um anti-herói específico da história do Brasil, atualizado para o século atual. Lunga é Lampião e Zumbi, Madame Satã e o Bandido da Luz Vermelha, um Antonio Conselheiro da guerrilha, de unhas pintadas, anéis e maquiagem, que é referido pela primeira vez no filme pelo pronome feminino. Pronto para entrar na mitologia do cinema brasileiro, ele não é o único protetor da pequena Bacurau (é a união da própria vila – aliada ao já clássico “poderoso psicotrópico” – que a torna resistente, como a aldeia gaulesa dos quadrinhos de Asterix), mas sua presença paira por todo o filme como uma ameaça – e quando ela surge, torna-se gloriosa. Um personagem naturalmente clássico, exuberante e ameaçador como uma lenda do folclore brasileiro, nascido de uma interpretação que pede pelo menos um filme a mais só sobre sua importância. Pelo menos.

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A tensão imprevisível que sobrevoa cada um dos minutos do filme à primeira vista torna-se ainda mais profunda à segunda vez que o filme é assistido, pois ela vai para além da própria história. Na primeira vez, entramos ingênuos em todo aquele universo, tateando personagens e cenários como se cada degrau pudesse abrir um alçapão. À segunda vez, tornamo-nos cúmplices de seus agentes – primeiro da cidadezinha, depois dos forasteiros e finalmente do povo da cidade.

A sensação incômoda que encerra o filme atinge muito mais profundamente o espectador que os criticados finais das duas produções anteriores de Kleber (que eu, pessoalmente, nem considero tão problemáticos assim). A náusea, o desnorteamento e a esperança que se alternam durante todo o filme concentram-se na mesma sensação no minuto em que o filme termina e o estranho sentimento que nos deixa boquiabertos ou extasiados após a sessão vem com a constatação de nossa letargia e falta de dinâmica política, que passa a ser instigada pela provocação intensa que atravessa suas horas. E perdura.

Assim, cada cena, cada personagem, cada fala, cresce exponencialmente na memória – e Kleber e Juliano deixaram pistas e pistas (algumas até inconscientes, como o número da distância na placa que localiza Bacurau no mapa) espalhadas pelo filme. Como comentei na abertura do Vida Fodona mais recente, pegue apenas o exemplo de “Bichos da Noite”, música de Sérgio Ricardo escolhida para o cortejo fúnebre que abre a história. A canção foi originalmente composta para uma peça de Joaquim Cardozo, poeta e dramaturgo pernambucano que começou tardiamente a vida artística, lançando seu primeiro livro de poemas aos 50 anos de idade, época em que passou a escrever suas peças. “Bichos da Noite” foi escrita para a primeira peça de Cardozo, O Coronel De Macambira, antes de Sérgio Ricardo ser chamado para compor a trilha sonora de dois clássicos brasileiros que ecoam em Bacurau, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, de Glauber Rocha. Cardozo, antes de se assumir poeta, era engenheiro civil e foi o responsável por transformar em cálculos matemáticos boa parte dos devaneios arquitetônicos de Oscar Niemeyer – incluindo aí parte de Brasília e especificamente o Palácio do Planalto. Numa única canção, que menciona nominalmente o título do filme, Kleber e Juliano plantam referências ao Cinema Novo, ao governo federal, à cultura pernambucana, à construção de Brasília, à paisagem nordestina.

Dezenas de outros exemplos surgem durante todo o filme: de uma escola chamada João Carpinteiro (traduza o nome para o inglês e temos uma das principais referências cinematográficas do filme) à singela foto de Sônia Braga e Lia de Itamaracá juntas ainda jovens, passando pela estranha substância ingerida pelos habitantes da vila, pelo destino do infame prefeito, pelo final dos invasores. Tudo tem pista, tudo tem subtexto, tudo vai para além da história. Isso tudo num filme que une sexo, nudez, drogas, palavrões, tiros, perseguição e uma exaltação à cultura e às ciências humanas (à culinária, à música, à dança, à museologia, à televisão, ao teatro, às letras), tornando-o potencialmente tão grande quanto Cidade de Deus e Tropa de Elite antes dele (e, de alguma forma, antevendo, como os dois, a década que veremos no futuro?).

Bacurau é um vírus e quem sintoniza-se em sua frequência sai do cinema infectado – pedindo mais. Como um vírus, sua principal função é a replicação – e aí o filme tem um caráter de meme, repetindo-se como uma ideia que, depois de plantada na cabeça do espectador, perdura por horas, dias. Em pouco tempo o filme estará online e nas bancas de camelô pelo Brasil todo e sua narrativa flerta com uma situação que todo brasileiro pode se identificar. Sua sobrevida vai para além do universo ficcional e encontra-se com o Brasil de 2019 quase como um desafio, como se o futuro e o filme – o principal acontecimento cultural de 2019 até agora – nos perguntasse: vai deixar assim, é?

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