Richard Barbrook x John Perry Barlow (2003)

, por Alexandre Matias

O Mídia Tática Brasil deu início aos seus trabalhos nesta sexta, 7 de março, com uma mesa redonda histórica – literalmente. Afinal, foi a primeira vez que duas forças antagônicas do pensamento pós-eletrônico se encontraram pessoalmente: de um lado, o americano John Perry Barlow, vice-presidente da Electronic Frontier Foundation e autor Declaração de Independência do Ciberespaço; do outro o inglês Richard Barbrook, do Hypermedia Resource Center e autor do Manifesto Cibercomunista. Só isso bastaria para a noite no Sesc Avenida Paulista ser rotulada com o adjetivo citado no início, mas se levarmos em consideração que tal encontro aconteceu no Brasil, num evento de natureza inédita por aqui e com a chancela do governo federal, podemos crer que as implicações são muito mais profundas do que em qualquer outra circunstância – especialmente para nós, brasileiros.

Mas o que deveria ser um embate de forças e idéias, tornou-se um motivo para ambos defenderem seus pontos de vista ao mesmo tempo que espezinhavam-se mutuamente. Tirando todo o debate ideológico e informacional, o que se assistia era à velha arenga entre ingleses e norte-americanos: um acusava o outro de ser radical demais, caricato demais, previsível e ingênuo demais. Cada um à sua maneira: Barlow exibindo aquele showmanship ianque que substitui o carisma por uma arrogância sarcástica [“De onde eu venho, do Wyoming, ser chamado de stalinista é um insulto”, depois que Barbrook apenas citou o stalinismo como parte do cânone do comunismo]; Barbrook arregalando os olhos à cada declaração de efeito do americano, engolindo gargalhadas em tom de desprezo e cuspindo sua franqueza britânica como o punk acadêmico que é [“Deus me perdoe por concordar com John Barlow”, disse antes de concordar com o óbvio de uma proposição do público – que a fome seria um problema mais urgente que a inclusão digital]. O clima tenso e animoso era cortado pelas piadas populistas de Barlow e pelos comentários irônicos de Barbrook.

Sentado na ponta à esquerda da mesa, Barlow é, fisicamente, o que aconteceria com Chuck Norris se ele se tornasse pastor evangélico de TV. Sua atuação era puro showbusiness, naquele tipo de entonação “como eu sou foda” que o Jô Soares faz para agradar sua claque. Parte do público [auditório lotado, gente em pé e nos corredores], deslumbrou-se com o papo furado caubói: “Fiz parte de uma banda, que não é muito conhecida aqui no Brasil… O Grateful Dead”, “Eu coloquei o Timbuktu online”, “Não fui a Davos este ano”. Jocoso, defendia o ciberespaço como um fim em si mesmo, um universo paralelo que deve adequar-se à realidade offline.

Já Barbrook, no canto direito, parecia uma cruza de Ken Kaniff [um dos personagens sórdidos do Eminem] com um dos caras do Madness. Chapeuzinho de palha e blaser um número menor, movimentava-se constantemente durante o discurso de Barlow. Dirigia-se rispidamente ao microfone, falando em tom sério quando apresentava os conceitos de sua Gift Economy e mostrava esgar ao discordar do que seu colega de mesa propunha. Insistia constantemente que não há diferença entre o ciberespaço e a vida real, que um é apenas a projeção do outro; enquanto Barlow filosofava sobre um ser como a mente [o ciberespaço] e outro como o corpo [a realidade].

Ficaram trocando farpas, Barbrook se referindo à Barlow como neoliberal e Barlow chamando Barbrook de nervosinho. Mas não deixa de ser notável o fato de Barlow reduzir a internet à lógica capitalista, desprezando conceitos fundamentais da rede em prol de opiniões controversas como “se a Internet fizesse alguma diferença, eu estaria preso” [como disse ao Pedro Dória, do Nomínimo]. Barbrook contrapôs-se de imediato: “Se a internet não fizesse diferença, eu não estaria aqui”.

Parêntese para o ministro: Gil, que mediava o debate, no centro da mesa, veste bem o traje de ministro da cultura, mostrando-se desenvolto para abordar as ramificações da discussão, todos parentes do tema central, inclusão digital. Mais do que isso, traçou paralelos didáticos a respeito de proteção de patentes e direitos autorais eletrônicos e aproveitou uma deixa para registrar em público sua opinião sobre a reforma da previdência [“se formos nos basear em direitos adquiridos, a escravidão não teria acabado”].

Constantemente bilíngüe [brasileiramente britânico], mostrou-se um tanto equivocado sobre alguns conceitos [não é possível chamar de “ciberanarquista” um sujeito que defende o direito de propriedade [como se referiu a Barlow], nem dizer que “o capitalismo deu certo” em mais de 200 anos e “o comunismo deu errado em menos de 80”]. E, claro, aproveitou o microfone para cantarolar [“vestiu uma camisa listrada e saiu por aí…”, cantou à menina de camisa listrada que recolhia as perguntas do público], o que eu, pessoalmente, acho do caralho. Mídia tática é isso aí.

Mas se como ministro Gil foi correto, o mesmo não pode se dizer de sua atuação como mediador. Descaradamente puxou a sardinha pro lado de Barlow, a quem servia de anfitrião na semana passada. Os dois trocavam elogios como velhos camaradas e em alguns momentos o ministro deixou escapar o desprezo por alguns conceitos de Barbrook. Mesmo na mediação propriamente dita, quando se dirigia aos dois a fim de confrontar algum tema, virava o corpo para o lado de Barlow e terminava o debate concordando com o amigo. Não deixa de ser irônico o fato de Gil ter passado boa parte do debate voltado para a direita.

Fossem apenas as inconveniências ideológicas dos gringos, até passaria. Mas Gil falhou ao não estender o debate aos outros presentes: Danilo Miranda, do Sesc; João Cassino [que veio no lugar de Beá Tibiriçá], dos Telecentros, Ricardo Rosas, da organização do Mídia Tática, e Evandro Prestes, do Online Cidadão, apenas comentaram em uma ou outra oportunidade.

O debate ficou mais tenso quando recorreram ao tema da pirataria – Barbrook levantando a bandeira preta ao aplaudir a pirataria como vitória do povo sobre as corporações; Barlow baixando o polegar ao simplificá-la como crime organizado. Levantou-se a questão sobre a troca de arquivos via internet, que acabou respingando em Gil que, ao ser confrontado por uma pergunta do público que pedia a opinião sobre do ministro sobre o assunto, “como integrante da indústria fonográfica”. Encurralado, mostrou o crachá: “Eu, como ministro, tenho que defender a lei, o estado de direito”, safou-se, salientando que, no entanto, as leis precisam ser revistas devido à mudança dos meios.

Interessante observar que, a despeito de suas posições o ciberespaço em relação à realidade, os textos-chave de John e Richard proclamam seus conceitos básicos usando paralelos com o mundo real: Barlow emulou a Declaração da Independência de seu país, Barbrook o célebre Manifesto Comunista escrito em Londres por Karl Marx e Friedrich Engels. Ambas analogias são conservadoras e reacionárias [mesmo que Barbrook tenha usado sua referência ironicamente], nenhuma vislumbra um texto-chave a partir de uma base nova e eletrônica – nada de paralelos com o morto-vivo universo da palavra impressa.

O debate terminou como o fim de uma guerra de nervos: sem conclusão, conceitos em aberto, os participantes virando-se para lados diferentes. Mas vale sublinhar aqui a experiência descrita por Evandro Prestes, do Online Cidadão, que não apenas ilustra o papel do Brasil na nova cultura eletrônica, como prova que o uso da cultura como intermediação dos conceitos de tecnologia e liberdade pode ser a saída mais eficaz para este embate. Ele contou como a grande maioria da população que não é familiarizada à internet se sente desconfortável com as regras impostas pelo computador, deixando pouco espaço para a intuição. Até que ele encontrou um sujeito feliz, passeando pelas páginas, clicando nos links, abrindo novas janelas, pulando de site em site. Entusiasmado, começou a conversar com o novato internauta que, ao perguntado sobre o que ele estava lendo, respondeu, sem pestanejar, que não sabia ler. O fato, que fez a maioria dos presentes na palestra apiedar-se do caso citado, no entanto foi encarado de outra forma por Cassino: “Ele estava desenvolvendo todo o deslumbre, o lado lúdico, e entusiasmado com o universo do computador”, coisa que os outros não conseguiam – pois têm dificuldade de ler. E, alfinetando não apenas o ministro presente como o público do debate, concluiu que “inclusão digital também é para vocês, da cultura”. Ao tratar a cultura como algo alheio a seu universo, Prestes mostrou o imenso abismo no debate eletrônico brasileiro – e, ao mesmo tempo, jogou a corda para o outro lado, disposto a construir a ponte. O lance é saber se alguém vai pegar.

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