O universo transmídia da Marvel

, por Alexandre Matias

Aproveitei o lançamento do trailer do Demolidor pra falar, lá no meu blog do UOL, como a Marvel tem acertado direitinho ao aplicar a narrativa transmídia ao seu plano de dominação do entretenimento do futuro: http://matias.blogosfera.uol.com.br/2015/03/14/o-experimento-transmidia-da-marvel/

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A Marvel finalmente mostrou a cara do novo Demolidor, que agora é um seriado, que estreia através do Netflix no dia 10 de abril. O trailer que conta a história de Matt Murdock, advogado cego que atua como vigilante à noite, interpretado por Charlie Cox, parece indicar que as adaptações dos personagens da chamada Casa das Ideias seguem cada vez mais criteriosas e próximas das expectativas dos velhos e novos fãs em relação a personagens que já habitam o nosso inconsciente coletivo há mais de meio século. Mas não é só isso que a Marvel vem fazendo em sua escalada no mundo do cinema que agora começa a dominar a TV. O estúdio está colocando em prática – com maestria e numa escala bilionária – uma lógica de contar histórias que foi comemorada em diferentes momentos da cultura pop recente, sempre apontada como sendo o futuro do entretenimento e da produção cultural. Grande parte do sucesso da Marvel vem da aplicação prática e consciente do conceito de comunicação transmídia.

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Essa lógica hoje em dia é simples de entender devido à própria natureza da fragmentação de nosso cotidiano e consiste em contar uma história em diferentes plataformas. O conceito de narrativa transmídia ganhou essa denominação há pouco mais de uma década ao ser popularizado pelo comunicólogo norte-americano Henry Jenkins em seu livro Cultura da Convergência (Ed. Aleph), mas já vinha sendo aplicado há décadas em diferentes ocasiões e situações, cada uma com sua distinção particular. É importante não confundir com o simples conceito de marketing, que leva um personagem ou ícone para diferentes produtos. A narrativa transmídia pressupõe que a história seja contada em diferentes mídias – em que o maior desafio é desmembrar a história em vários outros roteiros menores sem que seja obrigatório desfrutar tudo para que se compreenda a história.

Os exemplos mais bem sucedidos disso talvez sejam a saga Guerra nas Estrelas, de George Lucas; a trilogia Matrix, dos irmãos Wachowski, e a série Lost, de J.J. Abrams. A história do clã Skywalker começou em 1977 como um filme que gerou continuações, mas desdobrou-se em livros, games, quadrinhos e merchandising sempre com um cuidado enciclopédico em preservar a própria mitologia. Matrix, de 1999, resolveu apostar neste formato até pela natureza de sua história, que se passa entre dois um universos – um cru e real, outro digital e fictício, e além dos três filmes que compunham a história original também teve desdobramentos em livros, quadrinhos, desenhos animados e games, sempre trazendo mais informações para a história principal de Neo, contada nos filmes. A série de J.J. Abrams, de 2004, aproveitou-se da popularização da internet do início do século e da invenção de novas plataformas digitais, como o YouTube, as redes sociais e os blogs para contar a história do que aconteceu com o voo 815 da Oceanic.

Nos três casos, havia uma história principal (contada nos filmes e na série) que era amparada por historietas paralelas e desimportantes para a trama principal. Afinal um dos pressupostos da narrativa transmídia é não obrigar o público a consumir tudo, permitir que a história possa ser acompanhada apenas na principal plataforma.

A Marvel dá um passo além nessa jornada e consciente. Sua transição para as telas de cinema teve que sacrificar os direitos autorais de pelo menos três grandes franquias da editora de quadrinhos (Homem-Aranha, Quarteto Fantástico e X-Men) em parcerias com estúdios de Hollywood que funcionaram como estágio para a Marvel dar seu principal salto como empresa e transformar-se ela mesma num estúdio. E desde o primeiro Homem de Ferro (2008), a empresa sabia que não estava simplesmente contando histórias de seus personagens em separados em filmes diferentes e sim contando uma longa história em diferentes filmes.

Não eram mais apenas continuações de filmes de super-herói. Cada filme contava a história de um super-herói até que, no finzinho, graças a um detalhe que virou marca registrada dos filmes da Marvel, Samuel L. Jackson aparecia como o Nick Fury imaginado por Mark Millar na série de quadrinhos The Ultimates (Os Supremos, no Brasil), a versão século 21 para os Vingadores, o grupo de super-heróis que reúne Thor, Hulk, Capitão América, Homem de Ferro, entre outros. Logo no primeiro Homem de Ferro, Fury fala de uma certa “iniciativa Vingadores”, que muito bem poderia ser um codinome para a estratégia bolada pelo estúdio.

Veio o primeiro Homem de Ferro e depois o segundo em 2010, o primeiro filme do Thor e o primeiro filme do Capitão América, ambos em 2011. Cada um contando a história de um dos heróis, mas sempre com a participação final de Nick Fury ou de um de seus agentes, Coulson (Clark Gregg), que fazia a amarração entre os filmes até o final apoteótico que reuniu os quatro super-heróis no mesmo filme, o bilionário Vingadores, de 2012, que tornou-se o terceiro filme que mais ganhou dinheiro na história do cinema, ultrapassando Harry Potters, Guerra nas Estrelas, Transformers, Batmans, Piratas do Caribe e ficando atrás apenas de Avatar e Titanic.

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Os Vingadores era só o fim da primeira fase, como se diz nos videogames. Ou da primeira temporada, como no mundo das séries. Ou do primeiro arco, como se chama nos quadrinhos, uma grande história contada em diferentes revistas. O conjunto de cinco filmes que inaugurou o estúdio Marvel era uma longa obra contada em diferentes produções, que funcionam de modo independente. Finda a primeira fase, o estúdio deu início à segunda, que começou com o segundo filme do Thor (O Mundo Sombrio), em 2013, o segundo filme do Capitão América (O Soldado Invernal) e pelos Guardiões das Galáxias, ambos do ano passado e conclui com o segundo filme dos Vingadores (A Era de Ultron) e a estreia do Homem Formiga (estrelado por Paul Rudd), em maio e julho deste ano, respectivamente. A terceira fase é a mais ambiciosa será inaugurada ano que vem com um terceiro filme do Capitão América (Guerra Civil) e o primeiro filme do Doutor Estranho (com Benedict Cumberbatch), segue em 2017 com o segundo Guardiões das Galáxias e o terceiro Thor (Ragnarok); continua em 2018 a primeira parte do terceiro filme dos Vingadores (Guerra Infinita), a estreia do Pantera Negra (o primeiro protagonista negro de um filme da Marvel) e do filme da Capitã (!) Marvel (a primeira mulher protagonista de um filme da Marvel) e conclui em 2019 com o filme dos Inumanos e a segunda parte de Guerra Infinita. Ufa!

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Mas isso tudo é só cinema. As histórias em quadrinhos deram origem aos filmes, mas foram adaptações de roteiros existentes, não havia diálogo entre HQs e filmes. O experimento transmídia da Marvel começou mesmo ao final da primeira fase nos cinemas, quando foi anunciado a série Agents of S.H.I.E.L.D., que começou em 2013 e contava a história da agência secreta de inteligência liderada por Nick Fury. Coadjuvante na história principal dos filmes no cinema, o agente Coulson foi catapultado ao papel de protagonista e na primeira temporada da série produzida em parceria com a emissora ABC, ela fazia coro simultâneo com os filmes da segunda fase – personagens de Thor apareceram na série quando o segundo filme de Thor chegou aos cinemas e referências semelhantes aconteceram em relação ao segundo filme do Capitão América e, na segunda temporada, com Guardiões da Galáxia. E certamente farão isso no próximo Vingadores e no Homem Formiga.

A segunda série da Marvel, Agente Carter, se passa após a Segunda Guerra Mundial e parece estar desconectada da linha principal das histórias, mas sua protagonista (a primeira mulher a encabeçar o elenco de uma produção do estúdio, Hayley Atwell) foi namorada do Capitão América (que ficou congelado e foi reanimado nos dias de hoje, essa é a mitologia básica do personagem) e ela é amiga de Howard Stark (o personagem inspirado em Howard Hughes que é o pai de Tony Stark, o Homem de Ferro) e de seu mordomo Edwin Jarvis (cujo nome batiza a inteligência artificial que toma conta da vida de Tony). Além disso, ela trabalha na S.S.R., uma agência de espionagem que pode se tornar a S.H.I.E.L.D. num futuro próximo.

Demolidor é uma das novidades da Marvel na TV para este ano – e muda também uma das formas de contar a história ao associar-se com o Netflix e não com um canal de TV tradicional. Seguindo o formato das séries do serviço de assinatura de filmes online, todos os episódios da primeira temporada do seriado estrearão no mesmo dia, 10 de abril. Ainda este ano veremos a segunda série da Marvel com a Netflix, A.K.A. Jessica Jones, e mais outras três estarão sendo produzidas, Punho de Ferro, Cage e Defensores, esta última reunindo os quatro primeiros personagens numa só série.

Ou seja, eles estão fazendo exatamente o que fizeram nos cinemas com a TV: apresentando personagens em obras isoladas (desta vez, séries, não filmes) para reuni-los numa mesma série depois e, certamente, interligá-los com outros filmes e séries que virão.

Há uma diferença estética e de proporção nestes seriados da Marvel com a Netflix em relação às obras do cinema: são heróis mais humanos que sobre-humanos, que lutam habilmente mas não têm propriamente superpoderes. Também são heróis de determinadas vizinhanças. Os Defensores não conseguiriam lidar com uma invasão alienígena como os Vingadores fizeram em seu primeiro filme. Por isso vai ser interessante cogitá-los como coadjuvantes de filmes cujos super-heróis protagonistas não são tão conhecidos do grande público (o que não é um problema para a Marvel, que emplacou os Guardiões da Galáxia até com facilidade), como Inumanos, Pantera Negra ou a Capitã Marvel.

Olhando de fora, parece que são vários filmes e séries de super-herói, mas o que a Marvel quer fazer com o audiovisual é o que fez, há muito tempo, nos quadrinhos: interligar personagens e histórias para gerar interesse do público para novos produtos, criando uma mitologia própria que consagrou a reputação da editora. E com isso ela pode mexer seriamente com as distinções entre TV e cinema. A associação com o Netflix deixa isso muito claro: ela sabe que o futuro é digital e online.

E apesar de parecer um jogo de grandes cifras, o experimento da Marvel pode servir como inspiração para outros universos transmídia que não necessariamente passem por Hollywood, produções milionárias ou astros ricaços. Não custa lembrar que parte dos formatos que nos referimos quando falamos de cultura (filmes, programas de rádio e de TV, discos e canções, fotografias) são invenções do século 20 originadas e delimitadas por novas invenções. A internet interliga diferentes mídias e o digital acelera a transmissão de conhecimento – é inevitável que assistamos à criação de novos formatos que contemplem a fragmentação multiplataforma de nossos dias.

O experimento transmídia da Marvel é só o começo.

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