O elogio do feio

, por Alexandre Matias

Além da matéria de capa (U2 e Stones) da Top Magazine de fevereiro, eu também publiquei essa, mais uma sobre o Sou Feia, Mas Tô na Moda – e funk carioca em geral.

A certa altura de Sou Feia, Mas To na Moda, filme de estréia da diretora gaúcha radicada no Rio de Janeiro, Denise Garcia, um dos inúmeros entrevistados do documentário sobre o papel e a presença da mulher no funk carioca pergunta-nos onde as “tchutchucas” e “cachorras” do gênero teriam aprendido que o excesso de sensualidade (elogio para uns, eufemismo para outros), presente em letras, gemidos, performances e posturas as levaria ao sucesso. Antes de esperar a resposta ele mesmo enumera: É o Tchan, “vai dançando na boquinha da garrafa” e outros sucessos familiares que tocam no Gugu e no Faustão.

Em outras palavras – se o sexo é aceito como meio de comunicação em diferentes veículos (das novelas da Globo aos trocadilhos de duplo sentido do pagode, passando por comerciais de cerveja, Bruna Surfistinha e as novas carreiras de Alexandre Frota e Rita Cadillac), por que no funk carioca ele incomoda? Por que os gemidos de Tati Quebra-Barraco, Vanessinha Pikachu e Deise Tigrona, os requebros de Lacraia e os sorrisos francos de Claudinho e Buchecha, Márcio e Goró e Mr. Catra são vistos com olhos tortos no mesmo país que venera a mulata, a garota de Ipanema e a loirinha do Big Brother Brasil?

Desde o último grande levante do funk carioca em escala nacional – em pleno Rock in Rio 2001, com o Bonde do Tigrão e a “Egüinha Pocotó” -, o gênero que já tem mais de quinze anos vem passando por uma reavaliação ética e estética. Por um bom tempo renegado à condição de “som de quarto de empregada”, o funk do Rio ganha novas platéias, inclusive no exterior, toca em grandes festivais e vem levantando discussões sobre respeito de seu papel e natureza na cultura brasileira. Por que o buraco, no caso, é mais em cima…

Spice Girls
“O preconceito é totalmente social. Se o funk fosse produzido no Rio por garotas brancas de classe média do Leblon, elas seriam as Spice Girls brasileiras, mas como é feito por negras e faveladas, elas são as desbocadas, as ignorantes que não sabem o que estão falando”, explica Denise, cujo filme que estreou em janeiro e continua em cartaz é um dos reavaliadores da cena carioca. “Esta discussão sobre a conotação sexual das músicas não faz muito sentido, não numa cidade que se orgulha do carnaval que produz, onde mulheres desfilam literalmente em carne e osso – ou cobertas por purpurinas, está bem – para quem, no planeta, tiver televisão assistir. Então, se quisermos discutir o papel da mulher na sociedade brasileira, temos que colocar, no mínimo, o carnaval na pauta. O carnaval é uma celebração brasileira e o funk também. A diferença entre as mulheres que aparecem nos carros alegóricos do sambódromo e as funkeiras é que as primeiras entram mudas e saem caladas e representam a exuberância das formas femininas. No funk, as mulheres cantam, vestidas, e no geral não exibem as invejáveis formas dos destaques das escolas de samba, mas a conotação sexual está fortemente presente nestas duas formas de expressão da nossa cultura”.

“Gostar da música ou não é um direito de todo o cidadão”, continua a diretora. “Agora, no caso do funk, a questão é mais cruel: os detratores chegam a dizer que não é música, ou seja, querem desqualificar o movimento descaracterizando-o. Como não é música? O problema é que os favelados não têm acesso aos meios que os desqualificam, os jornais, as TVs, os fóruns, as universidades, os blogs, os sites e portanto ficam sem direito à resposta. E enquanto isso a covardia dos que tem acesso a estes meios corre à solta. Porém, os funkeiros têm seu público fiel, que comparece aos bailes, que consome o produto e que mantêm o funk existindo dentro das comunidades”.

“E a exploração de mídia e gravadoras é sempre predatória – esgotar o artista e depois pegar outro. e o funk não tinha suficientes figuras com voz ativa, mobilização, interesse e força necessária para bancá-lo como movimento”, continua o jornalista Sílvio Essinger, autor do livro “Batidão” (Ed. Record), que fotografa o nascimento até o início da adolescência do gênero. “O funk também não tinha a defesa cultural que outros gêneros tiveram, como é o caso do axé, que aliás foi uma influência decisiva para a explosão do funk sensual”.

“A questão tá na etmologia da palavra preconceito. É o pré-conceito, o conceito que a pessoa tem antes de conhecer”, teoriza o pai do gênero, o DJ Marlboro. “O problema do Brasil não é apenas a discriminação e o racismo, e sim o fato de estes acontecerem de forma velada. A mesma pessoa que te cumprimenta e te dá tapinhas nas costas, fala mal de você pelas suas costas só porque você é da favela. O cara nem conhece a favela, mas tem esse pré-conceito que na favela só tem gente fudida, só tem bandido….”

Mutação
“É som de preto, de favelado”, cantava a dupla Amylckar e Chocolate nos anos 90, “mas quando toca ninguém fica parado!”. A descrição que os dois fazem do funk carioca poderia servir para boa parte dos gêneros populares do século 20. Como o funk, estilos musicais como o samba, o jazz, o forró, o rhythm’n’blues, o rock, o reggae, o hip hop, a axé music e os subgêneros da música eletrônica (drum’n’bass, techno, house) também nasceram em regiões urbanas decadentes produzidos por descendentes da Diáspora Africana, conduzindo tudo de forma não-linear, pelo ritmo.

“O que a gente conhece como funk carioca é uma mutação do Miami bass (vertente do hip hop surgida na Flórida) que começou a surgir no fim dos anos 80 quando as galeras resolveram entoar seus gritos de guerra, bem no estilo torcida organizada, por cima das bases instrumentais ou imitando foneticamente o que ouviam em inglês nas músicas”, explica Essinger. “Isso aconteceu naqueles mesmos bailes de subúrbio e periferia que anos antes tocavam o funk de James Brown e seguidores e, na renovação dos balanços, incorporaram o disco funk e depois o rap. O primeiro a fazer um disco de Miami bass em português foi o DJ Marlboro, no LP Funk Brasil (de 1989), inventando MCs. Logo depois apareceram MCs de verdade, como Galo, Neném & Mascote e D’Eddy”.

Sílvio continua sublinhando as faixas que moldaram o funk como nós o conhecemos hoje: “Entre as gringas, as de Miami bass que fizeram sucesso nos bailes e serviram de base para os funks foram “Doo Wah Diddy”, do 2 Live Crew; “It’s Automatic”, do Freestyle; “Your Boyfriend”, do Boys From The Bottom. Entre as nacionais, os primeiros sucessos foram a “Melô da Mulher Feia” do Abdullah, “Feira de Acari” do MC Batata, “Melô da Funabem” do Grandmaster Raphael e o “Jack Matador” do DJ Mamute, da equipe Pipo’s. Essas músicas deram origem ao funk de montagens, base para quase tudo que a gente ouve hoje”. “Montagem”, na terminologia do morro é aquilo que comumente nos referimos como “remix”.

Mundo Funk Carioca
“O Cristóvão Colombo e o Pedro Álvares Cabral do funk chama-se Hermano Vianna”, explica Marlboro, falando sobre o antropólogo irmão do paralama Herbert Vianna. “Cristóvão Colombo porque foi ele quem primeiro entendeu que o que acontecia nos bailes era uma manifestação nova e brasileira, quando escreveu o livro “O Mundo Funk Carioca” em 1988″, explica o DJ, “e Pedro Álvares Cabral porque foi ele quem me deu o meu primeiro seqüenciador, permitindo que começasse a haver uma cena de funk produzido no Brasil”.

“Meu envolvimento era como ouvinte de discos, muito intrigado com o que tinha acontecido à cena desde o fim dos anos 80, o período estudado pelo Hermano”, segue Sílvio. “De repente, havia toda uma música nova, com assuntos novos, muito interessante, sendo ignorada como fenômeno cultural pela imprensa formadora de opinião lasse média”.

Mas desde que Sílvio começou a pesquisar para seu livro, em 2001, muita coisa tem mudado nesta aceitação do fenômeno. Já saíram duas coletâneas sobre o gênero na Europa (Slum Dunk Presents Funk Carioca, pelo selo inglês Mr. Bongo, e Rio Baile Funk: Favela Booty Beats, pelo selo alemão Essay), Marlboro já se apresentou na Espanha (no renomado festival Sónar, em Barcelona), Inglaterra, EUA (quando tocou no Central Park) e França e representantes do gênero passaram pelos principais festivais do Brasil, do Tim Festival (quando a rapper cingalesa M.I.A. convidou Deise Tigrona para dividir seu palco no Rio) ao Skol Beats (quando o DJ Dolores chamou Mr. Catra para rimar sobre seu set). “A internacionalização tem sido fundamental para as pessoas entenderem que o funk chegou pra ficar”, explica o DJ.

Mas Marlboro não tem pressa. “Na verdade, eu acho que isso tá acontecendo muito rápido, porque isso sempre aconteceu, da música que antes era considerada pobre, vulgar e de preto ser descoberta anos depois de seu auge, com uma espécie de refinamento”, conta. “Aconteceu com o samba: o Cartola foi preso quando era jovem por ser sambista, imagina, e depois só teve seu valor reconhecido quando ele tava velhinho, com 70 anos. Luiz Gonzaga também, quando ele tava no auge, forró era “música de paraíba”, pejorativo mesmo. Acho que graças a essa era de excesso de informação e facilidade de comunicação – internet, celular, TV a cabo – esse reconhecimento tá acontecendo enquanto o funk vive sua grande fase. É uma questão de tempo”, sorri.

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