“It was fifty years ago today…”

, por Alexandre Matias

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Há cinquenta anos, os Beatles mudavam a cultura pop com seu magnífico Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band – escrevi sobre o disco clássico no meu blog no UOL.

Se houve um marco que determinou os rumos da cultura que vivemos hoje, este foi o disco que os Beatles lançaram há exatamente meio século, no dia primeiro de junho de 1967. Ao desvendar Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band para o resto do mundo, a banda do norte da Inglaterra que transformou-se no maior fenômeno das massas dos anos 60 reescreveu a história da civilização contemporânea a partir de um simples disco. O impacto do disco mais emblemático da história dos Beatles e da história da música gravada pode ser sentido até hoje e reverberará ainda por muitos anos.

Sua onipresença e unanimidade é tão recorrente que é fácil reduzi-lo como um trabalho menor ou superestimado. Mas nenhuma obra de arte na história da humanidade provocou tantas transformações e causou tanto furor e discussões quanto o oitavo disco da carreira dos Beatles. Vários outros acontecimentos históricos provocaram desdobramentos tão ou mais radicais do que este que é o álbum mais clássico da música moderna, mas nesta categoria entram eventos violentos, drásticos e complexos, como invenções tecnológicas, conceitos teóricos, guerras, conquistas esportivas, epidemias, tragédias e catástrofes naturais. Outras obras de arte tiveram um impacto tão duradouro ou revolucionário quanto este disco, mas nunca de forma tão simultânea e global. Até hoje, cinquenta anos depois de seu lançamento, gerações inteiras, contemporâneas dos Beatles ou não, lembram da revelação provocada pelo disco.

E não apenas de sua audição. Sgt. Pepper’s provocava o crítico, o especialista, o fã e o ouvinte para além do conjunto de suas treze canções. A transformação ia para além do próprio repertório e ia para o conceito artístico, a produção sonora, a embalagem gráfica, a apresentação visual. Diferentes desdobramentos – da evolução da cultura de massas do século vinte ao amadurecimento da ainda infante indústria fonográfica, passando pela consolidação do modernismo e ascensão da cultura pop ocidental – convergiam naquele único disco hoje mitológico.

Mas o mais impressionante é que não havia modelo de negócios, estratégia de marketing, conceitos intelectuais ou manifestos artísticos – tudo foi feito por quatro rapazes entre seus vinte e trinta anos que, fartos de serem tratados como produto de consumo, abandonaram a própria natureza do mercado em que estavam inseridos e a motivação básica que os uniu durante toda uma década (tocar música ao vivo) para conseguirem se reinventar artística e comercialmente. A transformação acontecia basicamente pelo fato de quatro filhos da classe operária de um antigo império colonizador em decadência começarem a agir como uma única mente, um único corpo. Talvez o melhor retrato desta nova fase do grupo foi o fato de que, depois de tirarem férias uns dos outros após anos se vendo diariamente de forma incessante, os quatro se reencontraram com a mesma transformação estética – todos estavam trajando bigodes que nunca haviam cogitado sem nem sequer terem combinado nada entre si.

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Por um semestre, no início de 1967, eles embarcaram em uma viagem que começou de forma nostálgica e logo descambou para a alegoria. John Lennon e Paul McCartney, a força-motriz e principais compositores da banda, voltaram para sua cidade-natal em forma de canção e, cada um deles, escreveu uma música que lhes trazia de volta às suas respectivas infâncias – John voltava ao orfanato próximo da casa de sua tia Mimi, onde passou parte de sua infância, e Paul ao terminal de ônibus por onde transitava diariamente quando ia para a escola. Strawberry Field (sem o “s”) e Penny Lane eram lugares mundanos e sem charme, que foram transformados em monumentos às respectivas juventudes dos dois, que logo entrariam para a história como a dupla de compositores mais antológica da cultura popular recente. “Strawberry Fields Forever” e “Penny Lane” fariam parte do novo disco de seu grupo, mas foram escolhidas para, no início daquele ano, serem lançadas como um compacto para mostrar o que os Beatles estavam aprontando no estúdio de Abbey Road. Um prefácio sensacional para uma obra-prima.

Não era pouca coisa. O single de duplo lado A parecia a continuação natural dos experimentos musicais e sonoros que o grupo vinha conduzindo a partir dos dois discos anteriores – Rubber Soul e Revolver, de 1965 e 1966, respectivamente -, mas agora parecia haver uma mesma temática, uma amarra conceitual. Ao mirar em sua Liverpool no ponto de partida do novo disco, os Beatles entenderam que era preciso transcender o formato LP – uma novidade mesmo ainda naqueles primeiros anos da música pop, um conceito que não tinha nem meio século de idade em 1967 – e transformar o álbum em um gesto artístico autoral.

A ideia original veio de Paul, a partir de um trocadilho infame durante um voo sobre o Atlântico. Viu o saleiro e pimenteiro dispostos próximos ao prato de comida e, brincando com as palavras, transformou “salt and pepper” (sal e pimenta) em um personagem fictício – Sargent Pepper -, maestro de uma banda inventada de um clube imaginário, o Clube dos Corações Solitários. A brincadeira evoluiu para um conceito ousado para a época, que aquele não era um disco dos Beatles e sim daquela banda enigmática. E foi vestindo roupas alheias – depois metamorfoseadas em fardas de uma fanfarra psicodélica – que os Beatles pularam num abismo de experimentações.

Logo estariam experimentando colagens sonoras e líricas, instrumentos alheios à música pop tradicional, drogas alucinógenas, temas distantes da alegria pueril dos primeiros dias, jogos de palavras, incursões geográficas, temporais e poéticas. Fugiam para o extremo oposto da beatlemania que havia lhes popularizado em todo o planeta, recriando o próprio universo de forma épica e, sem perceber, forçando o amadurecimento de toda sua geração e dando pistas para as gerações seguintes. Não fundaram a psicodelia, mas trouxeram-na para a pauta do dia, fundindo-a com seus recentes interesses por música erudita, alta cultura, pós-modernismo, música indiana, técnicas de gravação. Sob a batuta do produtor/professor George Martin, acompanhados de seus fiéis escudeiros George Harrison e Ringo Starr e a bordo de um estúdio que permitia apenas a gravação de míseros quatro canais simultâneos, John e Paul viraram a cultura do avesso, trazendo para fora todos seus ímpetos e instintos primários, mas envernizados pela curiosidade, pelo senso de exploração e de aventura e pelo salto no desconhecido.

A capa, hoje icônica, parecia traduzir todas as inquietações que o grupo sentia: era uma colagem ideológica de personalidades díspares – Oscar Wilde e Ghandi, Aleister Crowley e Shirley Temple, Mae West e Lawrece da Arábia, Bob Dylan e Karl Marx – que perfilavam-se a duas versões dos Beatles – uma retirada do museu de cera de Madame Tussauds (que parecia sinalizar que aqueles Beatles, em preto e branco, haviam ficado no passado) e outra multicolorida, sorridente e desafiadora. Aquela colagem visual conduzida por um dos grandes nomes da recente pop art, o inglês Peter Blake, traduzia tanto a ousadia comercial quanto a aventura estética encapsulada naquele disco, reforçada pelo fato de ser o primeiro álbum da história a vir com as letras impressas.

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A quantidade de trunfos de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club é imensurável. Sem ele, a cultura perderia o impacto global e os Beatles não seriam uma das principais forças artísticas do mundo até hoje. Seu cinquentenário vem apenas reforçar sua importância, tanto em termos criativos quanto mercadológicos. Nenhuma outra obra de arte foi tão influente e transgressora em tão pouco tempo – nem antes, nem depois.

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