Gainsbourg Imperial

, por Alexandre Matias

Sesc Pinheiros @ São Paulo
3 de setembro de 2009


Orquestra Imperial – “Commment te Dire Adieu”

Confesso que minha expectativa ficou entre a empolgação e o pé-atrás. O primeiro sentimento, claro, vinha da simples notícia que um dos principais colaboradores de Serge Gainsbourg, o maestro Jean-Claude Vannier, conduziria a Orquestra Imperial rumo a um mergulho na obra do maior nome da música pop francesa, escudado por ninguém menos que Caetano Veloso e Jane Birkin, musa maior de Serge. Por outro lado, o risco de carnavalização de uma obra cuja esculhambação era milimetricamente calculada existia e a possibilidade de esquentar, na marra, um autor essencialmente cool me fazia ter alguma ressalva em relação ao espetáculo.

Minha desconfiança já vinha se aquietando à medida que as primeiras matérias sobre o encontro saíram: falavam de um Vannier mão-de-ferro, que pensou que a Orquestra Imperial fosse uma orquestra de fato e que não gostava de brincadeiras nos ensaios. Um almoço com uma amiga no dia da estréia me pôs na mesma mesa de um dos envolvidos com o evento que, além de umas piadas de bastidor, ainda deu uma prévia do que esperar da noite.

E o ar que Vannier impôs sobre a Orquestra encaixou-se perfeitamente ao clima austero do teatro do Sesc Pinheiros. Sentados e paramentados como uma big band, o grupo funcionou como um relógio e os arranjos tensos e complexos apresentaram pouco espaço para o improviso. O ar de sobriedade era dado pelo próprio maestro, sentado ao piano de cauda à esquerda e revezando-se em teclados elétricos vintage, que conduzia a orquestra e chamava os vocalistas ao palco com o desprezo natural da língua francesa.

Assistimos a um show de precisão e sofisiticação, mas, principalmente, de conjunto – e aí o mérito recai sobre Vannier. Ele deu à Orquestra ares europeus inimagináveis e seus músicos e vocalistas gostaram de como foram vestidos. Nas primeiras músicas, era possível notar algum nervosismo nos cantores – ainda inseguros como o francês, com os primeiros minutos da apresentação e com o clima da noite -, que logo se dissipou: Moreno Veloso soou meio caricato no início de “Comic Strip”, logo envolto pelas onomatopéias estridentes da Bardot encarnada por Thalma de Freitas; em seguida a própria Thalma – novamente Bardot – titubeou um pouco em “Contact”, mas era natural do início do show.

A tensão ficou para trás quando Nina Becker vestiu-se de Rita Lee para encarnar a Françoise Hardy de “L’Amour en Privé” escudada de um Nelson Jacobina posando de guitar hero tropicalista. A partir daí já era possível ver os sorrisos entre os músicos da Orquestra e a sutil descontração do maestro. Thalma voltou para mais uma de Hardy (“Commment te Dire Adieu”) e para posar de Jane Birkin para Vannier, que assumiu os vocais de duas músicas (“Ballade de Melody Nelson” e “Ah Melody”) do disco central de Serge, Histoire de Melody Nelson. Mais uma com Thalma (“Insoluble”) e a Orquestra entra em mais uma faixa instrumental tirada de uma trilha sonora composta por Gainsbourg. A primeira – “Les Chemins de Katmandu” – abrira o show e agora era a vez de “Slogan”. Mais tarde viriam a roqueira “Cannabis” e a delicada “Théme 504”, com o vibrafone tocado por Kassin. E por mais que os intérpretes tenham brilhado em seus momentos solo, aí estava o grande trunfo do show. O corpo instrumental que a Orquestra Imperial se tornou nas mãos de Vannier tinha tanto parentesco com a obra de Gainsbourg como da fluência da própria orquestra por estilos diferentes – do jazz funk à surf music, passando por embalos rítmicos, marchinhas de carnaval, groove pesado, funk brasileiro ou canção francesa. Dava pra ouvir diferentes grupos nos detalhes da Orquestra, um grupo de músicos que se dá ao luxo de ter o melhor baterista da históriia do Brasil – Wilson das Neves – entre seus percussionistas. Mais dois hits – “Bonnie & Clyde” relido por Stephane San Juan e Nina Becker, com a cuíca vocal cantada por Thalma, que logo depois assumiu “Harley Davidson” acompanhada da guitarra de Kassin – e chega a hora dos convidados de luxo.


Jane Birkin e Jean-Claude Vannier – “Fuir le Bonheur de Peur Qu’il Ne Se Sauve”

Jane Birkin entra animada, falante, de jeans e camiseta regata, misturando inglês e francês e esbanjando toda a simpatia do mundo, como se ela pudesse ocultar o fato daquela senhorinha um dia ter sido um monumento à beleza feminina e logo depois engata “Fuir Le Bonheur de Peur Qu’il Ne Se Sauve” acompanhada apenas do piano de Vannier. Caetano entra na música seguinte, tímido e vestido como deve se vestir quando sai pra comer uma pizza (contrastando com os trajes de gala do resto da Orquestra), ele inicia o dueto de “Je Suis Venu Te Dire Que Je M’en Vais” com Jane enquanto ela se encosta nele como se abraçasse um velho namorado. Caetano, a princípio travado – parte da cena? Só ele sabe – logo se entrega ao corpo de Jane e os dois cantam um dos melhores momentos da noite. Caetano segue no mesmo nível e trasforma “Baudellaire” em uma música sua, mudando apenas a velocidade do andamento (incluindo até um trecho do velho samba-canção “Siga” no final da faixa).


Orquestra Imperial e Caetano Veloso – “Baudelaire”

O show termina com a celebração ao redor do disco Percussions, que Gainsbourg gravou com uma banda africana, e, assim, carnavalesco como temia incialmente, mas completamente dentro do contexto da noite (atenção para a caricatura assumida de Domenico em “New York U.S.A.” e na empolgação de Rubinho Jacobina em “Les Sambassadeurs”). A banda se despede com a última música lançada por Serge Gainsbourg, ironicamente batizada de “Requiem pour un Con” (“Réquiem para um Idiota”), em que cada músico vai saindo do palco e batendo continência para Vannier que termina sozinho no palco.

Logo em seguida entra Jane Birkin. Não há mais maestro, nem banda, nem tempo para apresentações ou agradecimentos. Sozinha ao microfone ela canta “La Javannaise”, uma das músicas mais bonitas do período pré-pop de Gainsbourg. Um encerramento perfeito para uma apresentação histórica que uma boa alma conseguiu disponibilizar para download. Assim, a impressão não é só minha.

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