Decade – Duran Duran

, por Alexandre Matias

mais essa, vai…

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Engraçado como o Duran Duran significa um monte de coisas diferentes, dependendo do ponto de vista adotado. Dá pra lermos a obra do grupo como art rock (refletindo os dias em que a moda começou a ser tratada como arte pela intelligentsia pop), pioneiros do videoclipe, epítome technopop, new wave para as massas, visionários do estilo vazio que dominaria sua década de atuação (os anos 80) ou, como eles mesmos se denominavam, novos românticos. Mas além de todos estes rótulos, o grupo inglês pode ser considerado um dos principais fatores não apenas na morte prematura da disco music como na resistência conservadora do rock’n’roll durante os anos 80. Se ainda existem moleques andando por aí com camisetas do Ramones e da Harley Davidson ao mesmo tempo que posam de rebeldes, deveriam agradecer sua existência ao Duran Duran.

Afinal, eles retardaram o processo de transformação que a disco music submeteu a música pop. A disco estabeleceu o fim do formato canção no imaginário atual. Respeitado inclusive pelos “rebeldes” do rock, a camisa-de-força formada pela seqüência óbvia “introdução/estrofe/refrão/estrole/refrão/ solo/ estrofe” foi estabelecida no começo do século 20 à medida em que a música erudita foi sendo passada para trás por um capricho tecnológico. Graças a primeiro aos tubos do fonógrafo de Edison e depois aos discos de cera do gramofone, o som só conseguia ser gravado por poucos minutos, em unidades de registro de baixa tecnologia. Logo, óperas e sinfonias perdem espaço para sonatas, valsas, exercícios e árias, cuja duração reduzida cabia nos cinco minutos exigidos pelos instrumentos de reprodução sonora. Com isto, a música popular viu a possibilidade de sair dos saraus e ruas para entrar nas salas de estar. Para isto, recondicionou sua estrutura ao formato canção – graças a ourives musicais de diversas partes do globo -, que logo ultrapassaria a música clássica no gosto popular e se tornaria a principal moeda no mercado de discos.

Nem mesmo o rock, que rompeu com parâmetros rígidos e dogmas da indústria do disco, conseguiu derrubar a canção. Quando tentou, retrocedeu no tempo e costurou diversas canções em colchas de retalhos que tentavam, em vão, emular a respeitabilidade e maturidade das obras de música erudita – era o rock progressivo, um dos responsáveis por popularizar o formato LP que, mesmo ultrapassando o pioneiro single como item de consumo no mundo inteiro, não abriu mão da unidade canção como bem básico em sua escala de valores.

Mas ao mesmo tempo em que estudantes ingleses frustrados tentavam canalizar sua baixa-estima em solos gigantescos e letras pastoris, alguns de seus contemporâneos nova-iorquinos estavam se divertindo bem mais. Negros, latinos ou descendente de italianos, homens e gays, este grupo de adolescentes passeava pelas noites de Nova York em busca de diversão sem limites e, cada um em seu momento, descobriu que o melhor jeito de não deixar a noite parar era comandando o som da festa. Nomes como David Mancuso, Francis Grasso, Nicky Siano, Steve D’Acquisto e Michael Cappello, e mais tarde Larry Levan, Frankie Knuckles, Walter Gibbons, Tee Scott, François Kervokian e David Rodriguez, assumiam o controle dos fonógrafos para despejar sobre a pista de dança as sementes do fim da música pop como conhecíamos até então.

Cada um destes sujeitos (todos com seu lugar de honra na árvore genealógica do DJ) entendeu o ritmo como vínculo unificador do espírito da noite e dispôs-se a tentar a utopia de George Clinton, uma nação sob o mesmo ritmo. Mais do que isso, propunham um planeta ao som do mesmo ritmo, recorrendo a discos vindo de diversas partes do planeta. A ampla paleta de cores sonoras adquiridas por estes DJs era reflexo da própria noite, em que diferentes culturas, raças, religiões e classes sociais se reuniam sob o mesmo teto. Assim, enfileiravam clássicos do rock com lados B instrumentais de grupos de funk, seguidos de bandas africanas elétricas, combos acústicos de ritmos latinos, percussão brasileira, cantos árabes e outras possibilidades sonoras à disposição. Estes sujeitos se enfiavam em lojas de discos (novos ou usados) procurando músicas que ampliassem ainda mais o espectro de suas noites, e que fizessem todo mundo dançar.

Assim, aos poucos foram entendendo o mecanismo da pista de dança. Surgiram as evoluções técnicas: músicas que se encaixam nas outras, variações na rotação de algumas faixas para o ritmo da festa continuar o mesmo, alterações de volume, efeitos sonoros, bateria eletrônica, mestre de cerimônias, efeitos sonoros e luminosos, malabarismo de discos… Tudo que estes DJs queriam eram que seu público ficasse impressionado com seu talento para conduzir uma noite, uma qualidade egoísta e comunitária ao mesmo tempo, já que um bom DJ garantia uma ótima festa.

Nestas mutações musicais, a canção deixa de ser imprescindível. O ritmo vem por cima de tudo e o groove passa a ser o item mais associado à pista de dança. Os novos refrões passam a ser os riffs de guitarra, as linhas de baixo, acordes tocados em tecladões cavernosos, solos, ataques de sopro, vocais encantadores – trechos musicais que sempre acompanham o ritmo musical da noite. E todos estes elementos podem ser encontrados em canções, mas não precisam seguir a mesma fórmula de sempre para que sejam assimilados e desfrutados.

Até que, pela convergência de diversos fatores, esta cena que acontecia no underground nova-iorquino explodiu para o resto do mundo. Seus valores foram deturpados radicalmente (o protagonista de Os Embalos de Sábado à Noite, Tony Manero, era sim italiano, mas machista e estuprador) e assim foi assimilado pela massa que, até então, consumia passivamente os subprodutos dos anos 60, baladeiros enfadonhos, bandas de rock progressivo, heavy metal e pop baba. Quando o punk rock surgiu no horizonte com uma solução possível (ironicamente, “no future”), o mercado de discos abraçou a noite da Grande Maçã como sua nova galinha dos ovos de ouro.

Não é exagero dizer que a disco music mudou mais a cara da música pop do que o punk. Enquanto este último resgatava os valores originais do rock e os contrapunha às qualidades mercantilistas da indústria de entretenimento (cobrando valores subjetivos, como “autenticidade” e “fidelidade”), a disco mexeu nos pilares desta mesma indústria. Formalizou o remix, inventou o DJ, cunhou o disco de 12 polegadas, acabou com o formato top-hits das rádios, abriu o leque de influências musicais, estreitou a relação entre artistas, executivos e produtores, reeditou o conceito de casa noturna (antes clubes, depois discotecas), reinventou conceitos de publicidade e promoção, profissionalizou as relações entre música e o mundo dos negócios, entre outros pequenos mas importantes detalhes. Mas, o feito mais importante do gênero foi ter mandado o formato canção para os ares. Assim, revoluções musicais que eram fruto de mudanças no comportamento social (como o hip hop, a acid house, o trance, o techno e o noise) puderam acontecer.

(Pode-se dizer que a revolução causada pela disco é a responsável pela padronização e pasteurização do pop e pela decadente mentalidade da atual indústria fonográfica. Mas lembre-se que ainda estamos em pleno andamento do que parece ser o fim do mercado de discos como nós conhecemos – o que, olhando à distância, pode ter sido causado pela própria disco).

O fato é que logo que a disco music estourou, todo mundo estava fazendo disco, em todas as partes do mundo. Fenômeno planetário, ela varreu culturas inteiras, reunindo-as pelo mesmo ritmo, que foi cooptado por artistas de diferentes áreas musicais – dos Rolling Stones a Frank Sinatra, passando por Gilberto Gil e Rod Stewart, artistas estabelecidos de todos os lugares abraçavam a disco como novidade artística, mas sempre de olho no lucro. A mania foi além da música e virou grife de loja de discos, de casa noturna, de roupas e cosméticos, e invadiu os meios de comunicação como um todo.

Natural que surgisse uma banda que fizesse o caminho inverso dos Stones em “Miss You”. Em vez de soar como uma banda de rock fazendo disco, o Duran Duran (que começou como uma imitação chinfrim do Roxy Music) era uma banda de disco fazendo rock. Mas não apenas isso.

Antenados com seus tempos, eles surgiram em 1979, com um golpe publicitário em forma de música – algo parecido com o que os Sex Pistols haviam feito três anos antes e que ainda era imitado por bandas inglesas sem criatividade, no começo dos anos 80. O grupo formado por John Taylor, Simon Le Bon, Roger Taylor, Nick Rhodes e Andy Taylor embarcou nesta onda, mas em vez de escrever manifestos e pregar rupturas, preferiram investir na própria imagem. Se ligaram que a década que começava dava muita atenção ao visual e capricharam na embalagem. Das roupas em tons pastéis aos penteados cheios de gel fixador, passando pela postura de palco e maquiagem. Lições aprendidas nos tempos em que emulavam o glam rock, se definiram em uma passagem clássica de seu primeiro hit, “Planet Earth”: “A new-romantic looking for the TV sound”. O trocadilho (“novo romântico” com “neurótico”) seria adaptado por William Gibson para batizar o marco-zero cyberpunk, Neuromancer, de 1984. E o “TV sound” era o som que eles queriam fazer.

Daí o cuidado nos videoclipes, que tornaram a banda pioneira no gênero. Inspirando-se no visual que o cinema começava a ditar como moderno (ar blasé, mulheres maravilhosas, cores berrantes, brilho, neon), transformaram seus filmes promocionais em singles pós-modernos e tiveram na MTV seu principal veículo de comunicação. A recém-criada emissora norte-americana agradeceu os cuidados com a imagem do grupo o transformando em seu principal artista nos anos pré-Thriller. Mesmo depois do furacão Michael Jackson, o Duran continuou mandando ver no visual, se inspirando ainda mais no cinema da época (“Wild Boys” remete a Mad Max e “Hungry Like the Wolf” homenageia Indiana Jones).

Mas e o som? Seria muito fácil o grupo embarcar na onda pós-punk vigente na Inglaterra: um som hermético e dançante, seco e sombrio. Mas ele não condizia com a utopia pop que o grupo almejava. Por isso, abraçaram a disco music e o baixo que cavalga (“tum-turutum–turutum…”) surrupiado do gênero se tornaria a marca regristrada do Duran Duran.

Por isso, nem new wave nem tecnhopop, o Duran Duran fazia disco-rock. Usando descaradamente artifícios em voga, eles apareciam como uma banda pop dos anos 70 submetida a um lavagem cerebral de timbres em um laboratório de disco music. Era a contramão do que fazia o Depeche Mode, que usava a canção para as pessoas se acostumarem com a nova era tecno (ouça “Just Can’t Get Enough” e perceba que, enquanto a banda apenas repete o refrão da música, todos os clichês de timbre e ritmo usados até hoje por DJs de techno e trance vão sendo inventados, instantaneamente). O Duran fazia o caminho oposto – aproveitava-se do sucesso e da familiaridade do público com a disco para entrar no mercado.

Isso não tira nenhum mérito do grupo – e é provável que, se ele não tivesse existido, outro grupo surgiria para cumprir esta função. O fato é que o Duran usou a disco como os Raimundos usaram o forró – apenas uma forma de conseguir se encaixar no meio. Se o fizeram bem (como a primeira parte da coletânea Decade mostra claramente), é por serem bons. Mas o fato é que graças ao Duran Duran, boa parte dos valores revolucionários assimilados durante o período da disco music dissiparam-se, e deram, ao final dos anos 80 e começo dos 90, uma nova chance do rock tentar ser rebelde e revolucionário. Se aqueles valores permanecessem desde então, os moleques com camisas dos Ramones e da Harley Davidson seriam vistos como os góticos, os fãs de Harry Potter, os praticantes de RPG e os colecionadores de blues: uma tribo reclusa e irredutível, que se acha melhor que o resto da humanidade mas não tem ambições de mudá-la.