Cult pop

, por Alexandre Matias

Essa saiu na Simples do mês passado

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Complexidade pop

Superproduções hollywoodianas provam que dar nó na cabeça do espectador com roteiros sofisticados e edições não-lineares não é privilégio do cinema alternativo e/ou independente. Pop também é feito para pensar.

Imagine um filme com uma edição não-linear em que o protagonista uma hora é uma pessoa e mais tarde é outra, que convive com personagens que passam o tempo todo se drogando e falando sobre teorias da conspiração. Este protagonista é um policial e um fora-da-lei ao mesmo tempo (suas personalidades divididas como um dilema moral), que usa um traje que permite que ele se disfarce usando pedaços de outras pessoas, que mudam constantemente. Não bastasse isso, imagine que a estética deste filme é um desenho animado concebido após cenas reais com atores de verdade e que seja baseado em um livro hermético de um papa da ficção científica.

Este filme existe e chama-se “A Scanner Darkly”, lançado no meio deste ano nos Estados Unidos e dirigido por Richard Linklater, um diretor versátil a ponto de filmar um dos filmes centrais no gênero DR (a dobradinha “Antes do Amanhecer/ Antes do Pôr do Sol” com Julie Delpy e Ethan Hawke, vista como um filme só, compete com “Maridos e Esposas” de Woody Allen e “Closer” de Mike Nichols neste quesito) e alguns dos melhores filmes de rock da história (“Jovens Loucos e Rebeldes”, “Escola do Rock” e “Suburbia”). Baseado no livro de mesmo nome do escritor Philip K. Dick, a descrição de “Scanner” no primeiro parágrafo, por mais densa e confusa que possa parecer, faz sentido, mesmo parecendo impossível ou “infilmável” ao primeiro contato.

Isso porque vivemos uma época em que os filmes tornaram-se mais densos e complexos à medida em que os anos foram passando – sem detrimento para o público. Muito pelo contrário: num mundo bombardeado por informação por todos os lados e cuja complexidade de relacionamento entre essas informações torna cada dia em nossa rotina uma busca sem fim num labirinto de sentido, o cinema que se apresenta desta forma torna-se uma espécie de jogo mental para o espectador, que se submete a tais desafios como uma forma de se divertir.

A lista começa no meio dos anos 80, com filmes independentes americanos repletos de personagens que, quando juntos, parecem revelar um único protagonista – o grupo. De “Faça a Coisa Certa” de Spike Lee a “sexo, mentiras e videotape” de Steven Soderbergh; passando por “Veludo Azul” (e, mais tarde, a série “Twin Peaks”) de David Lynch e “Repo Man” de Alex Cox, os filmes aos poucos vão perdendo seu centro de palco e dividindo a atenção entre coadjuvantes que entram mais no holofote. O diretor Robert Altman se reinventou nesta época, enfileirando filmes populosos como “Short Cuts”, “O Jogador” e “Pret-A-Porter”, estabelecendo um novo padrão para filmes que se tornariam clichês na década seguinte.

“Penso nisso como se fosse um novo tipo de microgênero: um filme que dá nó na nossa cabeça, idealizado especificamente para nos desorientar, para mexer com a gente”, escreve o jornalista norte-americano Steven Johnson em seu livro “Surpreendente!” (Ed. Campus), antes de começar a enumerar. “A lista inclui ‘Quero Ser John Malkovich’, ‘Pulp Fiction’, ‘Los Angeles – Cidade Proibida’, ‘Os Suspeitos’, ‘Amnésia’, ‘Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças’, ‘Corra Lola Corra’, ‘Os 12 Macacos’, ‘Adaptação’, ‘Magnólia’ e ‘Peixe Grande’”, continua, “talvez você deseje acrescentar ‘Matrix’ a esta lista, já que sua genialidade encontra-se astutamente em implantar a estrutura de dar nó na cabeça dentro de um filme de ação excessivamente caro”.

Johnson, autor de livros como “Emergência” (detalhando a semelhança da auto-organização de formigueiros, programas de computador, cidades e o cérebro humano) e “A Cultura da Interface” (sobre como a invenção do mouse criou um ambiente inteiramente novo para a criação), dedica ao cinema um capítulo inteiro de seu livro, que começou como uma pesquisa sobre a facilidade com que as crianças lidavam com situações complexas propostas pelos videogames. “Eu originalmente vendi ‘Surpreendente’ para o meu editor como um ensaio sobre como os jogos eletrônicos estão nos tornando mais espertos. Mas quando eu comecei a escrevê-lo, os EUA estavam no meio de uma polêmica sobre a queda dos níveis da televisão devido à transmissão do mamilo da Janet Jackson durante o Superbowl e eu tinha acabado de assistir com a minha mulher os DVDs de ‘24 Horas’, ‘Alias’ e ‘Six Feet Under’. Alguma coisa entre esses dois fatos me fez parar para pensar que a televisão nunca foi melhor do que hoje! E isso se tornou um argumento para a cultura pop como um todo, não apenas os videogames”.

No livro, ele vai além dos filmes alternativos e/ou independentes citados e pede para que comparemos filmes como “Procurando Nemo” ou “Senhor dos Anéis” com “Bambi” ou “Guerra nas Estrelas”, para percebermos que a complexidade não pertence apenas aos queridinhos da crítica – e também invade o terreno dos arrasa-quarteirões hollywoodianos. Mas Johnson centra o foco na primeira categoria. “Alguns destes filmes desafiam nossas mentes ao criar uma rede espessa de linhas de enredo que se cruzam; alguns são provocantes porque ocultam informações críticas do público; outros desafiam inventando novos esquemas temporais que invertem os relacionamentos tradicionais de causa e efeito; alguns filmes ainda desafiam quando deliberadamente camuflam a linha entre fato e ficção”, continua no livro, antes de ressaltar que, “a propósito, tudo isso faz parte das técnicas clássicas da velha cinematografia de vanguarda”.

“A maior parte destes filmes rendeu mais de 50 milhões de dólares apenas em ingressos de bilheteria e todos eles geraram dinheiros para seus criadores – apesar de sua dependência nos dispositivos de narração, que poderiam tê-los classificados como cinema de arte trinta anos atrás”, finaliza Johnson, mostrando na prática a velha máxima em que o que era novidade no passado torna-se regra no presente.

“Depois que eu parei para prestar atenção neste aspecto da cultura, ele parecia estar onde eu olhava”, continua na entrevista. “E isso tem continuado desde que o livro foi lançado, particularmente com o enorme sucesso de um programa como ‘Lost’, que realmente encarna tudo aquilo que eu escrevi”.