Bruce Sterling + Júlio Verne

, por Alexandre Matias

Esta não é, no entanto, a primeira vez que entrevisto Sterling – apenas a primeira vez pessoalmente. Certa feita já havia entrevistado o sujeito, mas para a Folha de S. Paulo, no falecido caderno Mais, à época do centenário de Júlio Verne, em 2005. Ó só:

O pai da matéria
O escritor cyberpunk Bruce Sterling fala sobre o papel de Júlio Verne, cuja morte completa 100 anos, como fundador da ficção científica

Bruce Sterling animou-se para conversar sobre Júlio Verne. Um dos pais do último grande cânone da ficção científica no século passado, o gênero chamado de cyberpunk, Sterling não é apenas um dos inúmeros frutos da árvore genealógica que o escritor francês, autor de livros como “20 Mil Léguas Submarinas” e “Cinco Semanas Num Balão”, plantou no final dos 1800. Mais do que isso, Bruce é um entusiasta fervoroso do papel de Verne como pai da matéria.

“Quando Júlio Verne inventou a ficção científica”, disse Sterling em sua palestra no sexto Simpósio Internacional de Arte Eletrônica (o ISEA), em 19 de setembro de 1995, em Montreal, no Canadá, “ele descobriu quase acidentalmente que a França do século 19 era um grande mercado para tecno-romances. Ele encontrou e alimentou o enorme apetite cultural da época por tecnologias futuristas como o balão de ar quente, o submarino elétrico, o navio de guerra equipado com aeronaves, o canhão lunar”.

“Hoje, ao fim do século 20”, continuou, “eu sinto uma grande senso de solidariedade para com meu ancestral espiritual quando falamos de assuntos como realidade virtual, telepresença e vínculos diretos entre nosso cérebro e o computador. Mesmo quando estou aqui, em frente de vocês, eu mal consigo esconder minha gana natural em inflar estes enormes balões hi-tech prateados com o ar quente da imaginação”.

O paralelo que Sterling traça entre sua própria obra e a de Verne não almeja a autocelebração – é quase como um exercício dos limites que qualquer escritor que lide tanto com ficção científica quanto com as transformações da tecnologia atual em nossa sociedade deveria fazer consigo mesmo. Autor de livros como “Piratas de Dados”, “Tomorrow Now” e da coletânea “Mirrorshades: The Cyberpunk Anthology”, Bruce, tecnófilo e enciclopédico, briga para que um autor francês seja considerado o pai de um gênero cujas grandes obras foram escritas em inglês.

Verne, cuja morte completou 100 anos no último dia 24 de março, foi celebrado por Sterling nos prefácios que este escreveu para novas edições de “Volta ao Mundo em 80 Dias” (Around the World in Eighty Days, Random House, 2003) e “A Ilha Misteriosa” (“The Mysterious Island, New Amer Library Classics, 2004), e no já clássico ensaio “Midnight on the Rue Jules Verne, em que repassa a biografia do francês de forma a enaltecê-lo. “Uma espécie de tradição popular na ficção científica circunda seu pai fundador Júlio Verne. Todos sabem que ele era o cara quando a megalópole moderna da FC era apenas uma vila do século 19. Há um monumento em bronze em sua homenagem na parte velha da cidade, o Vieux Carre. Vocês sabem, aquela parte que foi construída pelos franceses, antes de existirem os carros”.

Qual é a principal contribuição de Júlio Verne neste primeiro século após sua morte?
Ele inventou um novo tipo de romance, que tornou-se tão conhecido e lucrativo a ponto de pavimentar o caminho para um gênero inteiro que existe até hoje.

Pode-se dizer que ele era um escritor de literatura fantástica que gostava de tecnologia?
Acho que é mais apropriado dizer que Júlio Verne escrevia sobre tecnologia, ainda que se permitisse algum exercício de literatura fantástica.

Suas idéias ajudaram no desenvolvimento da ciência e da tecnologia que veio depois da publicação de seus livros ou ele apenas estava a par do que acontecia na época?
Verne tinha conexões muito boas com o mundo científico, especialmente entre geógrafos e exploradores. Ele pôde tornar públicas muitas tecnologias ainda incipientes, como a energia elétrica, que eram apenas curiosidades de laboratório em sua época. Muitos de seus jovens leitores ficaram tão intrigados por seus livros que se profissionalizaram em campos técnicos – desta forma, ele também agia como recrutador de profissionais técnicos.

Não é interessante o fato de o principal escritor da Revolução Industrial ser francês?
Não, de forma alguma. A França era um centro de poder científico e industrial com alcance global. Se a França não tivesse saído tão ferida nas guerras da Europa continental, provavelmente estaríamos falando em francês agora. Na época de Verne, a memória de um conquistador mundial como Napoleão ainda era muito recente, enquanto os revezes assustadores da Guerra Franco-Prussiana, da Primeira Grande Guerra e da Segunda Guerra Mundial ainda iriam acontecer no futuro. Os franceses são um povo ótimo, mas sua condição geográfica não foi justa com eles.

O que você acha da obra de Verne em termos literários?
Bem, ele não é de forma alguma um literato elegante, mas acho que Verne é melhor escritor de prosa do que o que seus críticos dizem. Ele é muito bom ao construir cenas dramáticas com reviravoltas surpreendentes. Mas sua grande virtude era sua pesquisa meticulosa. Eu não consigo lembrar de outro escritor de histórias fantásticas que o consiga equipará-lo neste quesito. Ele era capaz até mesmo de escrever enciclopédias, o que ele, na verdade, também fez.

Qual era a importância política de um escritor de ficção científica tão popular em sua época?
Verne é um autor lembrado por todo o planeta e não há dúvidas de seu orgulho de ser francês, mas poucos livros seus se passam na França. Ele era um escritor europeu que não temia olhar para além da fronteira. Se uma Europa futura quiser assumir um papel de líder global, ele pode ser um interessante exemplo a ser seguido. Ele seria um exemplo ainda mais interessante a ser seguido por novos escritores de ficção científica que tentem trabalhar com os grandes poderes em desenvolvimento de países emergentes como Índia, China e Brasil. Imagine uma “Volta ao Mundo em 80 Dias” moderna, em que Aouda é o personagem principal e todo o livro seja indocêntrico. Seria uma obra bem interessante.

Antes de ser publicado, Júlio Verne foi descartado por diferentes editores como sendo “científico demais”.
Escritores recebem críticas e são rejeitados pelas razões mais improváveis. Eu acho que o verdadeiro motivo pelo qual Verne era dispensado com freqüência é que ele simplesmente não era um praticante literato convencional. Ele nunca passou muito tempo discutindo romances com escritores; as raízes de sua literatura estão no teatro. O status quo literário não é muito agitado, mas se você o ignorar, é muito provável que eles lhe paguem na mesma moeda. E eles não sabiam o que fazer com Verne. Ele deixou Paris, que era a capital da vida literária, para trabalhar em Amiens. Ele se marginalizou por opção.

Mesmo sendo contemporâneo de autores como Alexandre Dumas e Victor Hugo, Júlio Verne é o autor mais traduzido de todos os tempos. Qual é o motivo de sua popularidade?
Acho que você deveria perguntar porque Dumas e Hugo são menos populares hoje em dia. E eu acho que é porque suas obras estavam envolvidas com as tensões culturais de seus tempos que cada vez mais tornam-se parecidos com artefatos do passado. Verne tinha uma visão mais remota e abstrata dos assuntos da pauta de sua época, por isso seus livros envelheceram melhor.

Ele pertence a uma geração de escritores que viu o declínio da dominação mundial francesa e a ascensão do Império Britânico. Suas obras refletem esta mudança de poder?
Acho que a grande mudança no trabalho de Verne acontece logo após que ele se torna um político eleito. Uma vez que ele se tornou uma autoridade local e estava envolvido com o governo diário de uma cidade, ele passou a entender que o mundo não dá margem para super-heróis fantásticos como o Capitão Nemo. É quando seu trabalho torna-se mais quadrado e pessimista – como se alguém o levasse para trás das cortinas, onde ele pudesse ver as alavancas e as engrenagens. Isso pode ser um pouco desapontador.

Quais são seus livros favoritos de Júlio Verne?
“Vinte Mil Léguas Submarinas” é sua obra-prima. Mas meu livro preferido é “Paris no Século 20”. É uma obra de texto fragmentado, mas ao mesmo tempo é uma das visões mais impressionantes do futuro jamais imaginada por um romancista.

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Júlio Verne no Brasil
Algumas obras do autor francês que estão em catálogo no país

Volta ao Mundo em Oitenta Dias (Ed. Ática, 2000, 248 págs. R$ 19,90)
Cinco Semanas Num Balão (Ed. Ática, 1998, 304 págs. R$ 19,90)
Paris no século XX (Ed. Ática, 1995, 224 págs. R$ 20,00)
Viagem ao Centro da Terra (Ed. Ática, 2000, 232 págs. R$ 19,90)
A Jangada – 800 Léguas Pelo Amazonas (Ed. Planeta, 2003, 371 págs. R$ 38,00)
20 Mil Léguas Submarinas (Ed. Ediouro, 2004, 184 págs. R$ 24,90)
Da Terra À Lua (Ed. Melhoramentos, 2004, 128 págs. R$ 19,90)
O Raio Verde (Ed. Melhoramentos, 2005, 128 págs. R$ 19,90)

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