Brasília 1983, por Hermano Vianna

, por Alexandre Matias

mixtura-moderna

E na onda deste novo filme sobre o Legião (alguém mais viu? Eu não vi ainda, mas tenho certa curiosidade), segue a primeira matéria escrita sobre a geração de Brasília nos anos 80. Escrita por um tal Hermano Jr. – hoje mais conhecido como Hermano Vianna -, a reportagem foi feita para a revista carioca Mixtura Moderna, editada pela Ana Maria Bahiana e pelo José Emílio Rondeau no Rio de Janeiro há 30 anos, e resgatada pelo Olympio em seu blog. Leia a íntegra abaixo:

Ai de ti, Brasília
Da capital do poder e do tédio, uma injeção de energia para sacudir as rachaduras. O cerrado contra-ataca

Por Hermano Jr.

Quem diria! Os primeiros punks brasileiros nasceram em Brasília, à sombra do poder, e eram quase todos filhos de figuras importantes do governo federal. Se você for um punk paulista ou carioca que gastou suas poucas economias prá comprar a Mixtura Moderna certamente estará com ódio desta afirmação. Você pode queimar a revista ou, eu prefiro, escrever uma carta injuriada dizendo que eu não entendo nada de punk. Tudo bem, eu já li vários fanzines paulistas que me dizem o que é ser punk, o que é anarquia e até mesmo como usar uma suástica. Não tenho nada contra as etiquetas sociais. Mas também não posso fazer nada se desde 77 alguns brasilienses adotaram idéias, roupas e comportamentos punks. O que caracteriza cada um desses itens? Quem tem a verdade do punk? Provocados desta maneira o pessoal de Brasília me responde: punk não é uniforme, cara, é revolta. E revolta não é privilégio do proletariado paulista ou do subúrbio carioca. Punk é uma revolta sem planos de guerra detalhados, sem líderes estrategistas. Afinal, a proximidade do poder (se você ainda entende o poder como aquilo que acontece no Palácio do Planalto) não torna nem mais fácil, nem mais difícil, combatê-lo. É necessário sempre reformular as táticas, renegar os rótulos, destruir o lugar comum. Não é por um acaso que os brasilienses, anotem o que eu estou dizendo, fazem o rock mais ousado deste país.

Brasília é, desde a sua criação, causa das mais variadas polêmicas. Odiada por alguns, um sonho frustrado para outros, sua arquitetura continua a ser o símbolo máximo da ânsia modernista da alma brasileira (desde quando o Brasil tem alma?). Somos modernos e está acabado: vejam a capital que construímos. Não é de se estranhar que a construção de Brasília tenha se dado num governo que tinha por lema fazer o Brasil se desenvolver cinqüenta anos em cinco. O que é ou pra quem serve esse tal de desenvolvimento, ninguém sabe. Brasília tem 23 anos e nenhum plano urbanístico pôde prever o que já aconteceu nesse meio tempo. É uma cidade bonita? Não sei, num cartão postal até que impressiona. Mas morar lá é barra pesada. Brasília é fria, monótona, depressiva. A capital da esperança ocupa lugares de destaque em estatísticas pouco comuns: é o local, no Brasil, onde ocorrem mais suicídios e onde se consome mais drogas.

A característica principal da população brasiliense é a sua transitoriedade. Poucas são as pessoas que vão morar lá para sempre. Todos estão na cidade contando os dias que faltam para acabar o mandato ou chegar a s férias, quando voltarão para seus estados de origem. Por isso você não pode formar uma banda de rock, por exemplo, sem levar em conta que o guitarrista vai se mudar pro Rio no meio do ano, ou que o pai do baterista foi convidado para ser cônsul em Adis Abeba. Nada, exceto a mesquinharia da grande política nacional, tem continuidade em Brasília. Mas esta situação começa a mudar. Não é preciso nenhuma campanha tipo I love Brasília para saber que alguma transformação já está ocorrendo. Um ouvido um pouco mais atento consegue perceber a criação de um sotaque próprio de Brasília.

É uma mistura incrível de entonacões paulistas, cariocas, goianas, gírias de todos os lugares do país. As primeiras gerações que nasceram e se criaram no Distrito Federal já estão na casa dos 20 anos. São poucos, ainda, mas se os juntarmos com as outras pessoas, que moram há poucos anos em Brasília, mas que não estão afim de ficar o tempo todo reclamando da falta do que fazer, já teremos um bom número. Esta gang está produzindo filmes, poesia, música e teatro que falam sobre sua cidade. Existe um número surpreendente de grupos de rock já formados. Curiosa e sorrateiramente, Brasília adquire o título de capital brasileira do rock’n’roll. A segurança da arquitetura brasiliense apresenta suas primeiras rachaduras.

O grande impulso inicial para a “explosão” do rock brasiliense foi a formação, em 78, do grupo Aborto Elétrico. Em Brasília é muito mais fácil você ter acesso à s informações musicais de outros países. Tem sempre alguém viajando, um amigo que mora no exterior e que pode mandar um disco ou o New Musical Express para ler. Quando quase ninguém tinha ouvido falar de punk, o Aborto já tocava músicas influenciadas por Pistols, Dammed, Clash, etc. E não era só isso. Numa letra eles anunciavam, para quem quisesse ouvir, as suas intenções: “desde pequenos comemos o lixo comercial-industriaI/mas agora chegou a nossa vez/ vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês/ somos filhos da revolução/ somos burgueses sem religião/ nós somos o futuro da nação/ geração coca-cola”. O Aborto tocava em qualquer lugar, ao ar livre, na frente das lanchonetes, onde quer que pudesse conseguir emprestado uma tomada. Foram os anos mais radicais do punk brasiliense. Outras bandas surgiram motivadas pelo sucesso (não entendam essa palavra ao pé da letra) do Aborto Elétrico. Os nomes: Dado e o Reino Animal, Metralhaz, Os Vigaristas de Istambul (onde tocavam dois punks iugoslavos, filhos do embaixador daquele país) , Blitz 64, Blitx etc. Não consegui saber direito a história destes grupos, alguns duraram poucos meses, outros só conseguiram sobreviver no meio de uma troca interminável de músicos.

Hoje os nomes mudaram e se multiplicaram. Você pode conhecer os mais diversos estilos do rock contemporâneo escutando grupos como Elite Sofisticada, Gestapo, Las Conchas de Su Madre, Banda 69, Bambino e os Marginais, CIA, Fusão, Raízes da Cruz. Você pode ainda se surpreender com o jazz do Artimanha, ou como som inclassificável do Liga Tripa. Mas os grupos de rock mais interessantes de Brasília são: Capital Inicial, Legião Urbana, XXX e Plebe Rude. O Legião Urbana (Renato Russo, baixo e vocal; Marcelo Bonfá, bateria; Dado Villa-Lobos, guitarra) tem apenas meio ano de vida, mas todos os seus componentes já tocaram em outras bandas. Renato Russo é talvez o músico mais experiente do rock de Brasília. Autor da maioria das músicas do Aborto Elétrico, com o final deste grupo ele partiu para uma rápida carreira solo, acompanhado única e exclusivamente por seu violão.

Renato, dono de uma voz poderosa, é o primeiro grande cantor do rock nacional. Também letrista de grande originalidade (“estou cansado de ouvir falar em/ Freud Jung Engels Marx, intrigas intelectuais/ rodando em mesa de bar”), seus temas e imagens são uma reação direta às metáforas estúpidas que dominaram a nossa música popular em todo o decorrer dos anos 70. Ninguém quer mais ouvir falar em sensações das cordilheiras! A música do Legião Urbana está muito próxima do som de grupos como Joy Division, Public Image e Cure, suas principais influências.

O Capital Inicial (Heloisa, guitarra; Loro, guitarra; Flavio Lemos, baixo; Fê, bateria) já foi chamado pelas más línguas de Talking Heads do Planalto; pra mim, isso é elogio. Mas o apelido não tem muito a ver. O Talking Heads é apenas uma das influências, talvez de destaque, numa lista que inclui Cure, U2, Gang of Four, funks e baião. O trabalho das duas guitarras é fundamental para a caracterização do som do grupo. Nada de solos. Seu espaço é preenchido com riffs funky e acordes preciosos. Os vocais são feitos principalmente (pois todos cantam) pelos dois guitarristas. As letras, na sua maioria compostas pelo baterista Fê, que também foi do Aborto Elétrico, são agudas reflexões sobre o cotidiano da juventude brasiliense. Nada escapa (“quero soltar bombas no Congresso/ fumo Hollywood para o meu sucesso/ sempre assisto a Rede Globo/ com uma arma na mão/ se aparece o Francisco Cuoco/ adeus televisão“), nem mesmo a figura de Dom Bosco, um místico que sonhou profeticamente com a construção de Brasília (“O mal já esta feito/ deve existir algum jeito/ que tal elegermos um prefeito/ e matá-lo com um tiro no peito?“).

Estas letras já deram o que falar. É óbvio que a maioria não passou na censura. Mas não fica por aí. O Plebe Rude (André Mueller, baixo; Philippe Seabra, guitarra: Gutje Woorthmann, bateria; Ameba, Ana e Marta, vocais) foi preso em Patos de Minas, no período pré-eleitoral do ano passado, quando, num show dividido com o Legião Urbana, mostrou músicas como “Vote em Branco”. O vocal é o grande trunfo do Plebe Rude. O contraste entre a voz azeda do lead Ameba e o agudo das Plebetes , Ana e Marta, é explorado de uma forma super criativa. Absurdetes perdem! O som da banda é bem mais simples que o da Legião o e do Capital Inicial. Mas isso não é uma desvantagem. Torna sua música irresistível. É impossível ficar sem dançar. As letras são também inusitadas. Uma delas fala dos piratas do século XX, aqueles que andam com gravador e vídeo-cassete em punho. A única música de amor do grupo mistura declarações enamoradas com cenas de sexo e karatê . Uma versão de “God Save The Queen” louva nosso presidente e seus ministros. Mas o grande clássico o do grupo fica por conta de “Bandas BSB”, uma irônica a autocrítica da cena de rock brasiliense (“eles pensam que são tão originais/ imitando uma moda de fora”). Esta música termina com um atestado de óbito: “o rock já morreu, agora você já sabe/ não pode ser ressuscitado”.

Você deve estar perguntando o que é que essas bandas têm a ver com o punk. Nem os próprios componentes destes grupos sabem, ao certo. Perguntados se ainda a se consideram punks eles não respondem que sim, muito menos que não. O punk é uma grande influência, uma fonte inesgotável de idéias e, talvez, um passado, do qual se lembram com prazer. Os componentes do XXX (Alessandro, bateria; Bernardo Mueller, vocal; Geraldo, baixo; Jeová Stemller, guitarra) não têm motivos para tantas dúvidas. Somos uma banda punk sim, dizem, mas isso se você entender o punk como um estilo em constante evolução. O som produzido pelo XXX é, dentre os grupos de Brasília, é que mais se assemelha ao punk paulista ou carioca. Mas não se enganem pelas aparências. Entre os seu s grupos preferidos, eles citam de cara bandas como Xtc, Talking Heads e vários grupos de ska. As letras podem também lembrar o punk de São Paulo, mas refletem vivências completamente diferentes (“eu não agüento mais/ esta monotonia / o tédio está tomando conta / como uma epidemia”). O XXX foi o único grupo o brasiliense e a se apresentar na televisão local, num programa chamado Brasilia Urgente. As outras bandas já participaram de trilhas-sonoras de filmes e peças independentes, principalmente do cinema super-8 brasiliense. Desses filmes, o mais significativo é, sem dúvida, a Ascenção de Quatro Rudes Plebeus, produzido pelo Plebe Rude quando ainda não tinha o vocal feminino. O filme foi dirigido pelo baterista do Plebe, Gutje Woorthmann, e por Helena Resende (também vocalista free-lancer) e ganhou o prêmio principal do último festival de Super-8 do DF. A estória do filme, que dura 40 minutos, gira em torno de uma banda de rock que fica milionária, é roubada pelo empresário e termina como gari, levando um som com pás, enxadas e vassouras.

O rock nacional vive um momento de grande excitação. Brasília é apenas um dos focos desta agitação musical. Centenas de bandas, surgida s em todos os cantos do país, disputam avidamente um lugar ao sol. A imprensa, quem sou eu para analisar suas secretas razões, entrou com tudo na promoção do “novo fenômeno”. Já produziram até mesmo um verão do rock! Mas escutar o tão propagandeado som destes novos grupos é, com raríssimas e honrosas exceções, uma grande decepção . A música é velha , sem pique, uma sucessão interminável dos mais mamados clichês, dos mais repetidos chavões. No meio de um clima estéril como este é um alívio (e isso não é tietagem barata), escutar as bandas brasilienses. Chamá-las de punks, pós-punks, new wave, não me importa. Quem quiser que dê o nome, quem quiser que invente o rótulo. Brasília, famosa pelo tédio que acompanha seu cotidiano e pelas maquinações engenhosas do totalitarismo versão tupiniquim, produz uma música surpreendente. Guerrilha sonora no planalto central? Nada disso, Brasília ainda é o cenário ideal para a ficção científica: o cerrado contra-ataca.

Pra terminar: o Plebe Rude, o XXX e o Legião Urbana ensaiam numa mesma sala, alugada a Cr$ 2 mil cruzeiros por cabeça, de um edifício comercial de Brasília. É claro que só podem começar a tocar (o horário é dividido fraternalmente entre as bandas quando as “atividades normais” do edifício foram encerradas. O endereço da sala, para quem quiser entrar em contato com essa troupe incendiária (inclusive o Capital Inicial), é: Ed. Brasília Rádio Center, sala 2090, W-3 Norte (Setor de Radiodifusão Norte) Brasília, DF, CEP 70000.

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