Quando o Pará se encontra com a Bahia

Dois fundadores de clássicas escolas da guitarra elétrica nacional se encontraram neste domingo na última apresentação do evento Guitarra à Brasileira quando Armandinho Macedo recebeu Manoel Cordeiro em uma pororoca de solos e riffs que contagiaram o público que compareceu ao Sesc Avenida Paulista. Acompanhado de Yacoce Simões (teclado), Cesário Leony (baixo) e Citnes Dias (bateria), o fundador do A Cor do Som e herdeiro direto da tradição do trio elétrico começou a noite lembrando de parcerias com Fausto Nilo e Moraes Moreira e contando a história do instrumento que criou e ajudou a popularizar, a guitarra baiana, até que recebeu um dos mestres da guitarrada paraense para um dueto explosivo. A tradição baiana de Armandinho, embebida nos ijexás, no samba-reggae, no frevo pernambucano e no hard rock, iniciou um duelo instrumental com a escola caribenha carregada de soul norte-americano e temperos latinos, que poderia durar horas que o povo estaria dançando até agora. Um encontro raro e maravilhoso, que não deveria ficar só nessa apresentação.

Assista aqui.  

Quando Armandinho encontra o BaianaSystem

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Há 70 anos, uma dupla de músicos eletrificava uma espécie de violão montado num corpo maciço para inaugurar uma novidade no carnaval baiano: um cortejo itinerante guiado por um carro, em que os músicos, em vez de andar no chão com o público, apresentavam-se alguns centímetros acima do chão. A eletricidade que aumentava o volume do novo instrumento, que emulava as frases musicais ditas por naipes de sopro nos blocos mais tradicionais da época (de influência pernambucana), serviu como desculpa para batizar o novo formato de apresentação – era o trio elétrico fundado por Dodô e Osmar, que a princípio desfilou como “dupla elétrica” escrito na porta do velho Ford 1929 e que mudou o nome para trio com a entrada do músico Temístocles Aragão no ano seguinte. O experimento fez tanto sucesso que no ano seguinte conseguiu patrocínio, elevando ainda mais aquele palco itinerante que moldaria o carnaval de Salvador numa caçamba de caminhão.

O novíssimo instrumento – chamado no início de “pau elétrico” – foi a primeira guitarra elétrica da história do Brasil e desde 1950 vem se modernizando até ser reconhecido pelo nome que se tornaria oficial: a guitarra baiana. Junto com os tambores dos blocos afro, o pequeno instrumento é a cara da música de rua baiana e passou por diferentes fases, até ser reinventado há uma década pelo grupo BaianaSystem, que teve seu nome inclusive tirado do instrumento (fundindo-o com outra inspiração do grupo, os soundsystems jamaicanos).

Foto: Cartaxo

Foto: Cartaxo

Por isso a aproximação do Baiana com Armandinho, filho de Osmar Macedo, herdeiro do trio elétrico criado pelo pai e ele mesmo um divisor de águas da história do instrumento, a partir dos anos 70, não é propriamente uma surpresa – era inevitável. Depois de dois singles produzidos por Daniel Ganjaman depois do lançamento do excelente O Futuro Não Demora (os outros foram “Cabeça de Papel” e “Miçanga“), o grupo vem agora com “Corrida Elétrica”, faixa instrumental produzida por eles mesmos, que coloca dois guitar heroes baianos, Armandinho e Beto Barreto, num páreo de solos que não deixa ninguém parado – e que remete à Autobahn do Kraftwerk para além do design da capa.

Pisa fundo, Baiana!

“Fora Temer” foi o hit da Virada Cultural 2016

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Passeei pelo centro de São Paulo na Virada Cultural e presenciei que a motivação política da festa não brigava com a animação do público – e relatei o que vi, com vídeos, lá no meu blog no UOL.

30 anos de axé music

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No final do ano passado, eu já vinha conversando com o Diego pra começar a colaborar com o UOL quando, na véspera da véspera do Natal, ele me ligou me convocando para uma missão: fazer uma matéria especial sobre os 30 anos da axé music. O desafio foi mais logístico do que propriamente conceitual – tinha que marcar entrevistas em vídeo em pouco tempo com grandes nomes da música baiana no mês que antecede o carnaval (com o agravante de ter as duas semanas entre o natal e o ano novo no meio). Pessoalmente, acompanhei a evolução do gênero bem de perto, pois Brasília – onde nasci – foi um dos primeiros lugares para onde Salvador exportava aquelas bandas e era inevitável saber todas as músicas e bandas dessa época. A parte logística foi resolvida com o auxílio da querida Carol Morena, que humilhou na produção, mais do que profissa.

A partir daí parti para uma imersão em um rótulo que descreve um gênero e um modus operandi e tenta se confundir com a magia do carnaval baiano, que mexeu com a indústria do entretenimento brasileiro e revelou a primeira safra de artistas que não eram do Rio ou de São Paulo e que não precisaram se mudar para estas cidades para manter seu sucesso nacional. Um gênero que cresceu junto com a world music e reinventou a identidade global brasileira. E rendeu uma hora de bate-papo no estúdio na casa de Luiz Caldas, outra hora e meia de conversa na varanda da casa de Daniela Mercury, uma visita ao WR Estúdio e uma hora de conversa com o dono do Abbey Road da axé music, Wesley Ranger, vinte minutos com Bell Marques antes de assistir a um show do ex-Chiclete com Banana e uma hora de conversa com Armandinho, filho de Osmar, um dos criadores do trio elétrico, além de discussões sobre política, estética e carnaval com o jornalista Luciano Mattos, a antropóloga Goli Guerreiro (autora do livro A Trama dos Tambores) e o guitarrista do BaianaSystem Beto Barreto – e incontáveis moquecas e passadas em pontos turísticos para fazer o cinegrafista Rodrigo Ferreira, fiel escudeiro desta trip, fazer imagens de cobertura.

O especial rendeu uma matéria sobre a gênese do gênero, uma longa conversa com Daniela, uma discussão sobre a atual crise na axé music (negada por seus protagonistas), uma linha do tempo, além de galerias de fotos, quiz e entrevistas mais curtas em vídeo. Dá pra ver tudo a partir daqui. E é a primeira de muitas outras colaborações com o portal, aguardem.

30 anos de axé music: a origem

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A primeira matéria que fiz para o especial de 30 anos de axé music do UOL foi sobre a origem do gênero. Quando comecei a pesquisar o assunto notei que havia uma lacuna histórica entre os Novos Baianos e os primeiros hits da axé music que me fizeram investigar junto aos protagonistas do gênero o que estava acontecendo na Bahia entre o Jubileu de Prata do Trio Elétrico, em 1975 (quando pela primeira vez alguém canta num trio elétrico, que até então eram instrumentais), o surgimento dos blocos afro e o hit “Fricote”, de Luiz Caldas, dez anos depois.

“Conquistamos o Brasil pela simplicidade”, diz produtor do hit nº 1 do axé

Em 1985, recém-saído da ditadura militar, o Brasil estava em plena adolescência pop. Rio, São Paulo e Brasília curtiam o rock, como trilha sonora da abertura. O que ninguém esperava era que um guitarrista descalço e com cara de índio estivesse colocando nas ruas, desde Salvador, uma nova revolução musical que mudaria para sempre o mercado do entretenimento no país. Seu nome era Luiz Caldas, e a novidade levava o título de “Fricote”.

Conhecida pelos versos “Nêga do cabelo duro, que não gosta de pentear…”, a faixa que é considerada oficialmente o marco zero do axé music foi lançada no disco “Magia”, de 1985, e fez um sucesso inesperado em todo o país já nos primeiros meses daquele ano.

“Gravamos no final de 1984, e logo depois viajei aos Estados Unidos para comprar discos e revender nas rádios de São Paulo. Cheguei no final de janeiro para fevereiro, e o disco de Luiz Caldas já era sucesso nacional. Foi num intervalo de 30 a 60 dias que realmente conquistamos o Brasil. E pela simplicidade”, lembra Wesley Rangel, produtor musical e dono do estúdio WR, que se tornaria o berço de todos os nomes da cena axé em Salvador, de Olodum a Ivete Sangalo.

“As pessoas usam ‘Fricote’ como emblemática desses 30 anos porque foi a música que abriu portas para outros artistas e para que esse mercado se transformasse no que é hoje”, explica Luiz Caldas, em entrevista ao UOL, em sua casa, em Salvador. “Mas o embrião do axé music nasce comigo de 1978 para 1979 com a música ‘Oxumalá’ do disco ‘Ave Caetano’, gravado em nome do Trio Tapajós”, lembra o músico.

Ele também cita outras produções próprias anteriores, como “Axé pra Lua”, como passos na formação deste novo gênero. A faixa, uma homenagem baiana a Luiz Gonzaga, enfileira títulos de músicas do Rei do Baião, cita o termo “axé” no título e inspirou o nome do Bloco Qualé? por causa de seu refrão.

“Luiz Caldas conseguiu fazer a síntese dele de um novo tipo de música que estava surgindo, que a gente chamava de ti-ti-ti, deboche, fricote”, revela ao UOL Daniela Mercury, fazendo referência à levada caribenha no contratempo que unia os universos dos blocos afro e dos trios elétricos e aproximava as duas metades do Carnaval de Salvador.

Com 400 mil cópias de “Magia” vendidas em todo o país e a presença constante de Luiz Caldas e da cantora Sarajane no programa do Chacrinha, na Globo, naquele ano, o Brasil percebeu que havia algo diferente acontecendo no Carnaval baiano.

Raízes
As raízes do axé music podem ser encontradas no início dos anos 50, quando Dodô e Osmar resolvem usar suas noções de elétrica para inventar uma nova forma de pular Carnaval em Salvador. Inspirados nas charangas do Carnaval pernambucano, eletrificaram um cavaquinho e um violão (batizando-os de “pau elétrico”) e subiram em um velho Ford Bigode (que ficou conhecido pelo apelido de “Fobica”) para tocar frevos que, na versão pernambucana, eram executados por metais.

No Carnaval de 1950, desfilaram pela primeira vez com o trio elétrico, que ganhou esse nome por ter um trio tocando instrumentos elétricos em cima do carro, e se tornaram a sensação da folia daquele ano.

A primeira grande mudança rumo ao axé music aconteceu quando o guitarrista Armandinho, filho de Dodô, resolveu homenagear o pai no aniversário de 25 anos do primeiro trio. Por mais que tivesse crescido junto ao trio (Dodô montou, inclusive, um trio mirim, onde o filho estreou na guitarra aos 10 anos), o rapaz também tinha influência do rock daquela década. “Eu via naquele cavaquinho elétrico a minha guitarra”, lembra Armandinho. “E aí comecei a fazer o trio elétrico nesse formato de rock, tipo Beatles, Jimi Hendrix: guitarra, baixo e bateria.”

O formato banda também foi influenciado por outra transformação crucial daquele ano. “No meio do Carnaval, o Moraes [Moreira] estava em cima do trio com a gente. Tinha um microfone que era só para o meu pai dar o ‘boa noite’, mas o Moraes pega, começa a cantar a música ‘Jubileu de Prata’ e se torna o primeiro cantor de trio elétrico”, atesta Armandinho.

A novidade do vocal mudou completamente a cena baiana, porque, se antes era preciso ser um exímio guitarrista para tocar a recém-batizada guitarra baiana, abria-se então espaço para que cantores se transformassem nas estrelas dos trios.

Foi nesse momento que começaram a surgir os trios que hoje tomam conta do Carnaval baiano, que haviam incorporado uma novidade criada pelo trio elétrico dos Novos Baianos: os amplificadores, cada vez mais altos. Se, antes, o som do trio era o barulho distante dos instrumentos elétricos, agora ele se tornava um palco móvel cada vez mais agressivo.

No batuque que balança
Também por força dos Novos Baianos -que lançariam a cantora Baby Consuelo, além do próprio Moraes Moreira-, as influências da música africana começaram a se misturar à sonoridade dos futuros músicos de axé. O fenômeno coincidiu com o resgate de blocos afro como o Filhos de Ghandy, apoiado por Gilberto Gil desde sua volta do exílio, e a criação de novos, como o Ilê Ayê e o Olodum.

Daniela Mercury lembra como ficou sabendo, do alto de um trio elétrico, de uma nova música do grupo Olodum que estava se espalhando pelo povo: “A gente estava descendo pelo (largo do) São Bento, eu vinha com a Banda Eva, no Carnaval de 87, quando um amigo cantor chamado Marcio Muller me perguntou, na hora em que a gente chegou na praça Castro Alves: ‘Daniela, você já ouviu ‘Faraó’?’ E eu disse ‘Não, meu filho’. ‘Pois é, o povo só está cantando na rua, espera aí que você vai ver’. E cantou: ‘E eu falei Faraó-ó-ó’, só com a voz. E o o povo todo, solenemente, respondeu ‘Êêêêê, Faraó’. Eu falei ‘O que é isso?’. E ele explicou que era um tal Bloco Olodum, um bloco novo, afro, da turma lá do Pelourinho. Me arrepio só de lembrar.”

No compasso do sucesso da nova febre musical baiana, que com a chegada dos tambores mais lentos ganhava também o nome de samba-reggae, o gênero finalmente ganhou seu rótulo: “axé music”. O batismo feito ironicamente pelo jornalista baiano Hagamenon Brito, ao internacionalizar o rótulo de forma jocosa, previu sem querer a carreira internacional do gênero.

“Foi batizado de forma pejorativa, mas foi apropriado porque é uma música mundial”, enfatiza Luiz Caldas. “Nós precisávamos dizer o que nós fazíamos”, concorda Bell Marques, ex-vocalista do grupo Chiclete com Banana, que se tornou um dos principais embaixadores do Carnaval baiano no país e no mundo afora com as chamadas “micaretas” fora de época. “Isso acabou facilitando as coisas para a gente.”

Espalhando-se pelo Brasil
Capitaneada pela força de Daniela Mercury, que em 1992 fez um show para 30 mil pessoas que parou a avenida Paulista, o axé music espalhou-se definitivamente para o resto do Brasil, vendendo milhões de discos e lançando dezenas de novos artistas, que então experimentavam algo inédito: era a primeira vez que artistas de outra cidade não precisavam mudar-se para o Rio ou para São Paulo para atingir todo o país. Pelo contrário, o sucesso do axé music ajudou a transformar Salvador e outras cidades do litoral baiano na meca turística dos anos 90 -quantas viagens de formatura não miraram seus destinos para o Estado naquela década?

Nesse mesmo tempo, a recém-batizada world music ganhava força como nicho de mercado e abraçava a música que vinha de Salvador. E assim Carlinhos Brown ganhou um Grammy em um disco de Sergio Mendes e foi indicado para outros prêmios internacionais. Salvador recebeu então a visita de ilustres “popstars” como Paul Simon e Michael Jackson, que vieram gravar com o Olodum no Pelourinho (sem contar as inúmeras celebridades internacionais que visitavam a cidade durante o Carnaval, apenas pelo turismo).

O axé atingiu o seu ápice comercial na virada do século, quando Ivete Sangalo deixou a Banda Eva e saiu em carreira solo e a internet começou a fazer as vendas de discos despencarem pelo mundo. Incorporando outros gêneros musicais à sua vasta mistura de ritmos (uma mutação que começou ainda com a inclusão do velho pagode e do samba de roda na safra de bandas puxadas pelo sucesso “Segura o Tchan”, do Gera Samba), o axé music começou a se diluir e perder seu impacto nacional.

Ivete disparou como grande artista pop desta nova fase, lançando discos e DVDs ao vivo (pela MTV, no Maracanã e no Madison Square Garden, em Nova York) e reunindo convidados que mantinham o pé da cantora no axé music (Margareth Menezes, Tatau, Durval Lélys, Davi Moraes, Gilberto Gil, Daniela Mercury, Olodum, Bell Marques e Saulo Fernandes), mas miravam no estrelato pop independentemente do gênero musical (Alejandro Sanz, MC Buchecha, Seu Jorge, Nelly Furtado, Juanes, Diego Torres, Alexandre Pires, Samuel Rosa, Sandy & Júnior e o grupo Stomp).

A carreira solo de Claudia Leitte, que deixou o grupo Babado Novo já nesta década, também se refletiu nessa nova fase pop do gênero, que, sem novas estrelas, começou a buscar referência em gêneros marginais de Salvador, conseguindo hits nacionais esporádicos como “Rebolation”, do grupo Parangolé, “Lepo Lepo”, do grupo Psirico, e a recente sofrência do cantor Pablo, com sua “Porque Homem Não Chora”, provável hit do Carnaval de 2015 na Bahia e um sugestivo retrato da situação desse gênero musical em seus 30 anos.